Há uma década, falou-se que Gran Torino (2008) marcaria o fim da carreira de Clint Eastwood como ator, e que um dos maiores astros da história de Hollywood estaria se despedindo das telas. Dizia-se que ele estava mais interessado em continuar apenas como diretor, o que era compreensível, e deixar de atuar seria até natural dada a escassez de bons papeis para septuagenários. Porém, isso não se tornou realidade: alguns anos mais tarde o ator e astro Eastwood voltou a aparecer diante das câmeras no esquecível Curvas da Vida (2012), dirigido por um dos seus discípulos. Agora ator e diretor voltam a fazer dupla função em A Mula, um filme bem melhor. Parece que apareceu um bom papel para um octagenário, afinal…

Baseado numa história real – e recente, ocorrida em 2017 – em A Mula Eastwood faz o papel de Earl Stone, um homem idoso, sem papas na língua, que odeia a internet e possui uma personalidade cativante. Lembra alguém? Earl passou a vida na estrada trabalhando – ele é dono de uma fazenda e cultiva flores premiadas – e nunca deu muita atenção para a própria família. Em dificuldades financeiras, um dia ele aceita uma oferta de trabalho de um sujeito: transportar na sua velha caminhonete uma carga desconhecida. O trabalho lhe rende um bom dinheiro e ele o repete… De novo e de novo… Até que rapidamente ele se torna a mais rentável “mula” para o cartel mexicano, o transportador perfeito porque ninguém desconfia de um velhinho dirigindo pelo país.

Eastwood dirige essa história com seu conhecido naturalismo clássico: A Mula é um filme de um cineasta maduro e preciso, sem invencionices nos movimentos de câmera ou firulas narrativas. O estilo dele é tão preciso que é uma beleza de se ver, ainda mais nesta era em que os filmes ficaram cada vez mais agitados e cheios de enfeites, muitas vezes desnecessários. Alguns planos concebidos por ele e seu diretor de fotografia Yves Bélanger têm impacto: o rosto ensanguentado e enrugado do astro refletido no vidro de um carro perto do fim é a imagem assinatura do filme. As cenas de diálogo são perfeitamente costuradas, uma situação leva à outra de maneira orgânica, o filme respira. Eastwood tem plena consciência de qual é a sua história e de como contá-la: parece até reenergizado como narrador, depois de alguns filmes medianos em anos recentes. Será que é por que está cumprindo dupla jornada?

Bem, e qual é, afinal, a história? Assim como em alguns dos seus últimos filmes em que foi ator e diretor como Gran Torino e o vencedor do Oscar Menina de Ouro (2004), a história é a de um homem solitário tentando retornar a uma família e lutando contra o tempo para fazer isso. Pensar no tempo é até natural para um senhor da idade de Eastwood, e a ironia dramática do desfecho da história não deixa de ressaltar este ponto. Não é qualquer tipo de artista que consegue encarar um pouco a própria mortalidade na tela…

Além disso, é muito interessante perceber o subtexto por trás desta história, e que provavelmente deve ter sido um dos motivos que atraíram o astro ao projeto: o tema do preconceito tão natural e, por isso, mesmo chocante, da sociedade norte-americana é explorado em A Mula em diversos momentos, alguns deles chegando a lembrar cenas de Gran Torino. Numa cena, Earl chama uma família de afro-americanos parados na beira da estrada de “negrões”, em outra se coloca como patrão dos traficantes mexicanos que o acompanham numa das viagens para não serem importunados pela polícia. Earl é o dono do mundo ali no seu belo país: como o homem branco, ele nunca é importunado pela polícia – ao contrário de um pobre mexicano que fica apavorado ao ser parado na estrada pelo agente do FBI feito por Bradley Cooper. Simplesmente por ser branco e homem.

Ora, esse é o motivo pelo qual ele conseguia exercer sua atividade criminosa. Em algumas cenas, o protagonista chama os personagens mexicanos por termos pejorativos e inegavelmente se sente um pouco superior a eles. Ridicularizar a ideia do “caldo cultural” do seu país é (mais) um indício da visão crítica que o republicano Eastwood às vezes apresentou nas telas, não exatamente concordando dos ideais do seu partido…

No entanto, esses comentários são abordados no roteiro de forma sutil, outra característica de uma narrativa clássica. Estão lá para quem quiser ver, mas principalmente servem à história, e Clint Eastwood a narra com maestria e precisão, extraindo ainda atuações sólidas de nomes como Cooper, a veterana Dianne Wiest e da filha, Alisson. A Mula tem sua cota de problemas: o roteiro de Nick Shenck – o mesmo de Gran Torino – possui ao menos uma situação dispensável, apontando um indício de amizade entre Earl e um jovem traficante que não dá em nada, e alguns diálogos expositivos demais perto do fim. E o desfecho não consegue deixar de ser um pouco anticlimático.

Porém, nada disso prejudica seriamente o filme, que impressiona especificamente por causa da personalidade em frente à tela. Não deixa de ser muito irônico vermos Clint Eastwood passando para o outro lado da lei e penando por isso, e ao fazer isso o astro adiciona mais umas camadas de sensibilidade ao seu mito de diante das telas. Ter controle do próprio mito também não é para qualquer artista. Por tudo isso, tomara que Eastwood ache algum bom papel para um nonagenário no futuro próximo.