Para os cinéfilos, a bem sucedida carreira de “Aquarius”, mais novo longa-metragem do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, em festivais internacionais vem aguçando a curiosidade faz tempo. Aos olhos do público em geral, porém, o que chama a atenção, para o bem ou para o mal, é o simbolismo político que a obra carrega desde o protesto da equipe do filme no tapete vermelho do Festival de Cannes, em maio deste ano.

Desde a estreia nacional em 1º de setembro, uma parcela do público optou por boicotar “Aquarius” numa tentativa de defender posicionamentos político-ideológicos, enquanto que outros fizeram questão de ver o longa exatamente pelo mesmo motivo. Com tanto furor despertado, ficam perguntas mais elementares no ar: e aí, o filme é bom? Ou ele há de ser engolido pela polêmica que o circundou no Brasil? Os espectadores de Manaus finalmente podem se dar essa resposta a partir desta quinta-feira (15).

E a resposta gera alívio. Sim, “Aquarius” é um exemplar ímpar do cinema brasileiro atual, nasce emblemático e assim permanecerá em longo prazo. Justificar o motivo de se colocar a obra no “hall dos bons” necessita, de antemão, explicar de cara também o quanto se trata de um filme envolto de política, uma vez que nenhum discurso é neutro de ideologia e todas as nossas ações são envoltas por escolhas que resvalam diretamente em nossos direitos e deveres, mesmo no prazer, e mesmo que não possamos ou queiramos admitir. Isso não quer dizer, contudo, que se trata de um filme panfletário, a exemplo dos filmes que Leni Riefenstahl dirigiu para os nazistas ou do “cinema comunista” de Serguei Eisenstein (aliás, mesmo panfletários, ambos os diretores encabeçaram filmes irretocáveis).

Os sentidos de “Aquarius” podem até resvalar para o cenário político atual, já que é impossível não relacionarmos hoje tudo que nos cerca a ele, mas seu cenário imediato é o da política do cotidiano: como lidamos com nosso entorno. É o que vemos na protagonista Clara, interpretada com total domínio por Sônia Braga: trata-se de uma mulher idosa, mas nunca frágil, que sobreviveu a um câncer na juventude e hoje vive uma vida confortável no antigo edifício que dá nome ao filme. Ela então se vê obrigada a enfrentar o assédio da construtora Bonfim, que comprou todos os apartamentos do prédio (exceto o dela). O plano? Construir um moderno edifício à beira da praia de Boa Viagem, no Recife, onde antes, como ficamos sabendo, Clara viveu boa parte de sua vida e teve todas as lembranças que hoje, aos mais de 60 anos, carrega. Para a Bonfim, no entanto, a resistência de Clara é o estopim de questionáveis tentativas de “convidá-la a sair” do prédio para sempre.

Sonia Braga em Aquarius
Memorabilia à flor da pele

O primeiro tema que surge ao espectador é, de cara, é a memória afetiva que itens materiais suscitam e o abismo entre gerações na forma de lidar com a lembrança. Clara passa longos minutos, por exemplo, explicando a uma jornalista que a entrevista os motivos de ela ter uma vasta coleção de discos, mesmo não tendo problemas em consumir música em mp3. Explana sobre a história de um disco específico (Double Fantasy, de John Lennon) e como ele veio parar em suas mãos.

Tal como o apartamento como um todo, a ligação de Clara com os objetos é uma ligação de vida: ela, que por pouco teve sua própria história encurtada por um câncer, vê nele as marcas de sua existência e dos que vieram antes dela. Curiosamente, essa relação paradoxal apresenta a personagem, extremamente apegada a esses itens materiais, uma pessoa não tão materialista assim.

Como estamos falando do cinema de Kleber Mendonça Filho, as pistas dessa temática não ficariam distribuídas de forma tão explícita como no exemplo anterior. Em vários momentos surgem imagens antigas da cidade, pretensas fotos de infância da família de Clara, e mesmo os pequenos flashbacks dela e da tia Lúcia (Thaia Perez) misturam passado e presente, ou melhor, mostram como um pode mudar a percepção sobre o outro.

A memória afetiva cinematográfica também vem à tona. Quando vemos o pôster de “Barry Lyndon”, filme de Kubrick, no apartamento de Clara, rapidamente nos tocamos de que os profundos zooms in e zooms out provavelmente também remetem a esse filme, tanto quanto a personagem feminina fantástica que é Clara e a atenção aos pequenos detalhes que dialogam com a Nouvelle Vague.

O tempo surge, então, como personagem do longa, emoldurado pelo belíssimo trabalho de direção de arte, que atenta a cada pequeno item do “ambiente natural” de Clara, o apartamento no Aquarius. É ela que contribui para que o espectador se sinta envolvido pelo simbolismo do prédio que, a princípio, não tem tantos atrativos explícitos além da bela vista da praia de Boa Viagem, cobiçada pelos empreiteiros. É também a rede na varanda, os discos de beiradas carcomidas e a cômoda da tia Lúcia que nos fazem entender o senso de pertencimento de Clara àquele lugar.

Cena de Aquarius

Pero sin perder la ternura jamás

Numa trama que se impulsiona pelo desejo de Clara de permanecer e o desejo dos representantes da construtora Bonfim de retirá-la dali, nem tudo é conflito. A mais harmoniosa questão posta em perspectiva perante a memória afetiva da personagem é a questão da idade. Com mais de 60 anos, Clara é cheia de vida. Apega-se a tantos itens antigos, mas vive o presente de forma bela de se ver: dança, encontra o sobrinho e lhe dá conselhos amorosos, mergulha no mar agitado sob olhar atento do salva-vidas Roberval (Irandhir Santos), e não tem nada de viúva comedida e resignada.

O espírito da personagem dialoga de forma bela com os jovens que passam pelo caminho, não raro criando uma comunhão que se expressa pela música, outro item de extrema importância em “Aquarius”. É isso que faz com que a cena em que Julia (Julia Bernat) toca “Pai e mãe”, de Gilberto Gil, para Clara e família seja tão emblemática: as duas mulheres, a jovem e a idosa, identificam-se uma com a outra, e novamente a noção de passado, presente e futuro se entrelaçam pela empatia. E é por isso que cada canção, de “Hoje”, de Taiguara, a “Recife Minha Cidade”, de Reginaldo Rossi, passando por “Another One Bites the Dust”, do Queen, dizem algo mais que melodia e letra revelam no primeiro plano; elas são, também, o personagem solar que é Clara.

Dito isso, é redundante, nessa altura do campeonato, destacar o quanto Sônia Braga se mostra imersa na personagem. Ali não se vê Sônia, a estrela do cinema nacional, desde o primeiro minuto: vê-se apenas aquela mulher fortalecida por tantas lutas (“pero sin perder la ternura jamás!”, porque eu perco o leitor, mas não perco a piada). Interessante também perceber nela a idade, das marcas no rosto aos pequenos maneirismos, como quando responde às provocações da filha Ana Paula (Maeve Jinkings, muito bem no papel) cantarolando “Nervos de Aço”, de Lupicínio Rodrigues (Há pessoas de nervos de aço,/Sem sangue nas veias e sem coração,/Mas não sei se passando o que eu passo/Talvez não lhes venha qualquer reação).

Ainda assim, ela transpira à Clara uma vontade de viver que flerta com o sensual, gerando momentos de autorreferência que nada tem a ver com pedantismo, e tudo a ver com força e beleza. E quando achamos que aquela mulher fantástica que vemos na tela pode ser indestrutível, vemos ainda sua fragilidade na relação com o câncer e suas sequelas, assim como na relação nem sempre harmoniosa, mas sempre cheia de amor, com a família. Nesse sentido, o contraponto com a personagem de Maeve é agridoce: Ana Paula não se identifica com as motivações da mãe, é egoísta e um tanto instável por conta das circunstâncias, mas a afeição entre elas humaniza ambas as mulheres.

Sônia Braga em Aquarius
Direito à resistência

Dentre os sentidos que mais facilmente surgem ao público enquanto aspectos político-ideológicos de “Aquarius” está a forma como se apresenta o direito à resistência. Clara luta contra os desejos de uma corporação que poderia muito bem nem ter rosto, mas como se trata de Brasil, tem rosto e berço de família tradicional. Diego (Humberto Carrão) é o jovem à frente do projeto da Bonfim (nome emblemático para o que se pretende com a destruição do edifício Aquarius), um rapazinho lindo e simpático à primeira vista, mas que usa dos métodos mais questionáveis possíveis para fazer com que Clara mude de ideia de venda o apartamento para o grupo.

A primeira “ofensa” a Diego é o fato de que dinheiro não compra o que a personagem valoriza. É daí que vem a já clássica fala que vemos no trailer de “Aquarius”: “quando você gosta, é vintage; quando você não gosta, é velho”. Cabe a ele, então, macular o ambiente de várias maneiras a partir do assédio e da ameaça velada, já que não conseguir o que quer não faz parte do universo do jovem abastado, colocado na empresa pelo avô. A cada instante, nos questionamos como Clara suportará uma situação que resvala para o criminoso, e como ela poderá combater de igual para igual nessa tensão de poder.

É aí que se percebe mais claramente como as relações de poder buscam equilíbrio no conflito. Clara não é uma mulher sozinha contra um inimigo inominável: como ex-jornalista e membro de uma família de certa posição dentro de uma classe média, ela tem uma advogada, tem contatos, tem acesso a informações que rodam à boca pequena… em suma, mostra-se um indivíduo em condições de resistência, ainda que com chances mínimas de sair vitoriosa. As breves citações à situação das empregadas domésticas que circundam, discretas e alheias, as salas de estar que vemos em “Aquarius” reforçam tal interpretação: cada um busca se salvar como dá, e só nos resta tentar.

Mesmo com algumas metáforas mais brutas, expressas especialmente em detalhes de diálogo que, quando comparados a “O Som ao Redor”, mostram-se a principal fraqueza de “Aquarius”, este traz um conjunto tão belo quanto necessário. Isso se dá porque esse não é um filme sobre vencer ou perder; é sobre resistir, e talvez essa seja a mensagem que mais apaixona alguns (e gera repulsa de outros) no Brasil de hoje.