Seja no cinema, nos quadrinhos ou na TV, a relação entre Batman e Coringa é encarada como um dos conflitos mais ricos e complexos entre herói e vilão no universo da cultura pop. Embora com intenções diametralmente opostas, o Cavaleiro das Trevas e o Príncipe Palhaço do Crime são quase espelhos um do outro, e uma das obras que melhor captou o espírito desse relacionamento nem um pouco saudável foi a graphic novel Batman: A Piada Mortal (1988), com texto do mestre Alan Moore e ilustrações de Brian Bolland. Quase trinta anos depois, a clássica HQ ganha vida na adaptação em desenho animado dirigida por Sam Liu, com produção de Bruce Timm (um dos co-criadores da popular série animada dos anos 90), exibida em sessões especiais únicas no cinema antes de ser lançada direto no mercado de home video.

Em sua origem nos quadrinhos, A Piada Mortal é uma história curta, em que o Coringa executa um intricado plano para provar ao Batman um determinado argumento: basta um dia ruim para levar qualquer um à loucura. A vítima escolhida é o Comissário Jim Gordon, torturado e levado aos limites da insanidade para que o palhaço demonstre seu ponto – ou não. (Para quem não conhece a HQ e nem viu o filme, vale lembrar: há spoilers neste texto!). Entre os “métodos” usados pelo Coringa, se encontra um dos momentos mais controversos da história, que se tornou canônico no universo DC: o tiro que deixa Barbara Gordon, a então Batgirl, paraplégica. Ainda que polêmico, o momento não fica de fora da animação, que se mantém extremamente fiel à HQ original, acrescentando alguns poucos detalhes aqui e ali. A diferença mais substancial está na tentativa de dar mais peso à história de Barbara – e, assim, o que poderia ser um trunfo da adaptação acaba se tornando seu maior erro.

Primeiro ato: para a Batgirl, a piada ainda não tem graça nenhuma

Mesmo com o status de clássico dos quadrinhos, A Piada Mortal sempre foi alvo de críticas pelas escolhas de Alan Moore e Brian Bolland em relação à personagem da Batgirl – algo que o próprio Moore, no futuro, viria a desaprovar em entrevistas. O que acontece com Barbara Gordon raramente aconteceria a qualquer protagonista super-herói masculino: não só a personagem fica irremediavelmente paraplégica, como também é vítima de violência sexual, algo que, embora nunca fique explícito nos quadrinhos, é subentendido pela história. Além disso, todo seu trauma acaba servindo apenas como acessório para as ações que acontecerão com os outros personagens homens na história, como seu pai, Jim Gordon, obrigado pelo Coringa a ver fotos da filha nua e violentada.

Durante a divulgação da adaptação, Bruce Timm já havia declarado que a Batgirl ganharia mais espaço na animação, e isso realmente acontece: sob as mãos do roteirista Brian Azzarello, é criado um primeiro ato completamente novo, uma espécie de prólogo sobre a parceria entre Batman e Batgirl no combate ao crime na cidade de Gotham.

O problema é que o que parecia interessante em ideia é mal desenvolvido desde o princípio: os primeiros 30 minutos não só não têm relação alguma com o segundo ato do filme, como também acabam tornando a personagem de Barbara vítima de outro punhado de clichês. Hipersexualizada, com direito a closes da bunda enquanto corre no parque e um vilão mafioso que se torna obcecado por ela, a heroína também desenvolve uma estranha ligação romântica com o Batman (quando, tradicionalmente, os dois possuem uma relação quase parental), que culmina em uma bizarra cena de sexo com direito a ressaca moral no dia seguinte. Não fosse o bastante, a animação ainda corrobora a ideia do abuso, prolongando um pouco mais a cena e incluindo o Coringa desabotoando a blusa de Barbara.

Embora a ideia desses minutos iniciais fosse a de ampliar a participação da personagem e, provavelmente, causar também uma maior comoção sobre o destino dela para quem não conhece a HQ original, o tiro acabou saindo pela culatra. O saldo é que a Batgirl fica tão ou mais desaproveitada quanto era na história impressa – e os fracos diálogos de Brian Azzarello não ajudam também. Para sua personagem, a piada não é só mortal: é ofensiva.

Segundo ato: agora sim, A Piada Mortal

Batman: A Piada Mortal só começa propriamente dito depois desse prólogo, com diálogos e frames quase idênticos aos da graphic novel. Na narrativa, os detalhes adicionados são poucos e quase não fazem diferença, como uma luta a mais no parque de diversões entre Batman e os capangas bizarros do Coringa e uma investigação mais prolongada sobre o paradeiro do palhaço. Assim, para os fãs da HQ, a fidelidade está lá e deve agradar; para os “não-iniciados”, está o prazer de acompanhar uma história contida, que não precisa colocar mil easter eggs para se inserir num universo cinematográfico expandido (como Batman vs Superman, cof cof).

Em termos de estilo, a animação também é fiel aos tons mais neutros e escuros da colorização que Brian Bolland desejava desde o início, mas que só veio ao mundo na reimpressão da graphic novel de 2008. Os traços, porém, mudam, e lembram bastante o trabalho visto em Batman: A Série Animada, sucesso dos anos 90, trazendo uma vibe nostálgica ao filme – o que não é exatamente nenhuma novidade, já que o nome de Bruce Timm, criador da série, estava ligado ao projeto desde o início. Fora isso, nem sempre a montagem consegue acompanhar o mesmo ritmo fluido das transições da história original, e os flashbacks perdem também o diferencial dos objetos que ganham destaque em vermelho.

Talvez o grande diferencial positivo seja mesmo o trabalho de dublagem dos personagens: Kevin Conroy volta ao papel de Batman (sem a máscara, Bruce Wayne só aparece de relance em uma cena), Ray Wise encarna Jim Gordon e Mark Hamill (sim, o Luke Skywalker de Star Wars) é o ponto alto do filme. Sua interpretação do Coringa é perfeita, com um tom de voz que consegue expressar a loucura do personagem, sua crueldade e um tom maquiavélico até cantando numa sequência musical. Verdade seja dita: nem mesmo Heath Ledger, em sua ótima performance em O Cavaleiro das Trevas (2008), consegue um tom tão sinistro quanto Hamill.

A ambiguidade do final ainda está lá também: dessa vez, não temos a sirene de polícia e nem o feixe de luz refletido nas poças d’água, mas as risadas do Coringa e do Batman ouvidas em alto e bom som são o suficiente para entendermos o que se passou. Assim, Batman: A Piada Mortal pode não ser tão bom a fim de nos dar um sorriso no rosto de satisfação, congelado como o das vítimas do Coringa, mas passa perto e bate na trave, arriscando quase perder a graça no caminho.