Esquecido pelo grande público, além de continuamente considerado como um filme menor de Ingmar Bergman, “No Limiar da Vida” vai mais longe do que tal definição sugere. Lançado no final dos anos 50, época de pouca informação sobre as reais consequências de gerar outro ser – o que mesmo com alguma evolução perdura até hoje – Bergman expõe para o público as ansiedades, dúvidas e traumas de três mulheres marcadas pela gravidez. Ao longo do tempo, a gestação vem sendo vista como algo maravilhoso, dignificante, o único desígnio da mulher na terra. Essa idealização, ainda rastejando para ser quebrada, esconde a realidade daquilo que, de fato, acontece com o corpo e a mente da mulher nessa condição, a discussão perpetuamente adiada, aqui é exposta por Bergman sem sutilezas desnecessárias.

Bergman nunca escondeu a curiosidade sobre as mulheres e tudo que as cercava. Intrigado pelas suas questões, seu fascínio é explicito em todo seu trabalho. Durante a carreira, o diretor buscou compor nos seus filmes personagens que refletissem suas problemáticas ao mesmo tempo tão particulares e universais, sem subjugá-las. Nesse ponto, “No Limiar da Vida” é uma das representações mais admiráveis do cinema.

O roteiro assinado por Ulla Isaksson, autora dos dois contos base para a trama, desenvolve-se em um hospital, onde três mulheres em diferentes estágios lidam com questões relativas a gravidez. Cecilia Ellius (Ingrid Thulin) é internada após um aborto espontâneo. A ansiosa Stina Andersson (Eva Dahlbeck) aguarda o momento para dar à luz ao seu bebê, e a jovem Hjördis Petterson (Bibi Andersson) é confrontada pela realidade de um aborto malsucedido.

Ambientado em um único cenário, Bergman anatomiza o impacto da maternidade na vida dessas mulheres. Sem se perder em idealismos ou simplificações prejudiciais, o diretor estrutura suas protagonistas de modo a expor as diversas variantes do assunto. São três mulheres com percepções distintas, mas sobretudo fundadas em entendimento recíproco.

O cineasta busca compreender a realidade negada pela sociedade, e pela própria mulher, da maternidade como uma experiência frequentemente traumática. Bergman não fantasia as ações dessas mulheres, para isso foi tão crucial Ulla como roteirista. O mestre sueco analisa a divergência daquilo que se espera e aquilo constantemente ignorado, a real experiência dessas pessoas.

Stina é tudo aquilo que é socialmente esperado de ser mãe, devota e ansiosa pela chegada do bebê que já passa do tempo. A mulher vive um casamento feliz com um marido amoroso (Max von Sydow), igualmente impaciente. Em contraste, a adolescente Hjördis, internada depois de uma tentativa frustrada de interromper a gravidez, vive a angústia de não saber o que fazer. Sem o suporte do namorado ou da família, a garota encara a dificuldade de ser mãe solteira. Por fim, a personagem de Ingrid Thulin, Cecilia, depois de um aborto espontâneo nos dois meses de gravidez, refém de um casamento sem amor, nega ser destinada ao papel de mãe como toda mulher. Com esses extratos diversos, a narrativa não exerce comparações entre os comportamentos das mulheres. Sem condenar uma visão em detrimento de outra, Bergman coloca todas elas em paridade, sem deslegitimar suas atitudes. O diretor expõe suas diferenças, abarcando os vários pontos de algo tão múltiplo.

 “No Limiar da Vida” lida com destreza a complexidade das questões humanas tão caras a Bergman. No entanto, é a atuação das protagonistas que alça o filme definitivamente. Como o próprio Bergman afirmou, as performances das atrizes, especialmente as parceiras de longa data do diretor, são a potência do longa. Não à toa, Eva Dahlbeck, Bibi Andersson, Ingrid Thulin e Barbro Hiort af Ornäs dividiram o prêmio de melhor atriz do Festival de Cannes. As cenas do excruciante parto de Stina ou o monólogo de Cecilia mostram a perfeita sintonia das atrizes com seus papeis.

Longe de ser um filme perfeito, o longa tem o desenvolvimento pleno das personagens prejudicado pela curta duração. Inseridas em circunstâncias complexas demais para serem resolvidas em pouco tempo, a trama tem seu fim muito prematuramente, sem garantir o andamento indispensável para o exame um pouco mais detalhado dos seus aspectos físico e mental, além da conclusão apressada para um assunto social de extrema relevância, as dificuldades de ser mãe solteira.

Em um contexto social onde o peso da maternidade ainda não é avaliado com a clareza necessária, “No Limiar da Vida” deveria ser memorado ao lado das maiores obras de Ingmar Bergman, mesmo sem alcançar a precisão técnica dos seus títulos mais famosos. A competência das atrizes com o texto de Ulla Isaksson e o trabalho cuidadoso de Bergman, resultam na pérola escondida do cineasta. Revisitada em um período que ainda parece andar a passos lentos quanto ao assunto, no qual mulheres ainda tem receio de falar abertamente sobre tópicos como depressão pós-parto ou dos traumas causados pelo processo de se tornar mãe, é necessário obras com esse nível de empatia para quebrar certos tabus que ainda persistem.



A MULHER VENEZIANA

Desde o início da carreira, Ingmar Bergman mostrou interesse pela dinâmica entre casais e possíveis amantes. As relações conjugais ou apenas o jogo de interesses entre polos extremos são temas muito explorados, principalmente, nas suas comédias, e com apelo dramático em “Cenas de um Casamento”, série também para TV sueca. Muito por ser um assunto acessível, fácil de cair no gosto popular. A Mulher Veneziana, sua segunda produção para televisão, segue o instinto de trabalhos anteriores, contudo, sem a qualidade e a graça dessas obras.

O roteiro adaptação de uma peça italiana do século 16, La Venexiana, de autoria anônima, na direção de Bergman, o enredo conta a chegada do charmoso Julio (Folke Sundquist) a cidade de Veneza. Muito sedutor, logo a beleza do jovem encanta duas venezianas, a bela Valeria (Gunnel Lindblom) e a sedutora Angela (Eva Stiberg). As mulheres dividem o homem entre a paixão de uma e a manipulação de outra.

Sem maiores destaques, a ambientação do cenário é o que chama mais atenção. Construído nos moldes do clássico teatro grego, o figurino, as máscaras e a decoração perfeitamente harmonizada, garante ao espectador uma narrativa diferenciada. A intenção é realmente exibir um teatro filmado, proposta observada na abertura das cortinas no início do longa, certos excessos nas atuações e, até mesmo, o jogo de atos. As cenas da aventura romântica de Julio são intercaladas com um trio de mascarados interpretando cantos populares venezianos. O elenco, com exceção de Gunnel, é todo composto por atores fora do seleto grupo de escolhidos do diretor.

Como grande parte dos seus filmes que seguem essa temática, Bergman sempre declarou não possuir nenhuma pretensão artística, apenas diversão enquanto realiza algo para obter relativo sucesso financeiro. Contudo, “A Mulher Veneziana” não atinge uma coisa, nem outra. A falta de vigor presente nas comédias anteriores ou de uma narrativa com mais nuances, ainda que limitada pelo tempo, como acontece em “A Chegada do Sr. Sleeman”, impede uma experiência a altura do rigor artístico de Bergman. É somente um trabalho para fazer número na extensa filmografia do sueco.