Em sua primeira cena, observamos uma televisão ligada onde um filme está passando. Este em questão é “A Família Trapp”, a versão alemã de “A Noviça Rebelde”, dirigida por Wolfang Liebeneiner em 1956. A cena por si só faz uma referência a um momento de felicidade familiar. A dupla de diretores austríaca Severin Fiala e Veronika Franz utiliza esta cena para fazer uma cínica alusão aos laços familiares, da relação harmônica entre pais e filhos e do amor existente entre eles. Mas por detrás das máscaras amorosas e de um núcleo familiar feliz como poderemos sugerir pela cena de abertura, “Boa Noite, Mamãe” é uma fábula urbano-familiar ambígua e misteriosa, onde o terror não habita o imaginário de criaturas fantásticas como monstros ou assassinos psicopatas que invadem nosso ambiente. O horror (e tensão) aqui provém dos laços sanguíneos, onde vítimas e agressores moram no mesmo espaço ou ambiente, o que faz desta produção austríaca um estudo eficiente da violência familiar sob a esfera da ambiguidade.

No verão nórdico, os gêmeos Elias (Elias Schawarz) e Lukas (Lukas Schwarz), de nove anos, brincam harmonicamente nos arredores da casa onde moram, local isolado e afastado da cidade. Eles aguardam o retorno da mãe (a ótima Susanne Wuest, de “O Campeão de Hitller”) para casa, depois que esta passou por um período de internação em razão de uma cirurgia plástica no rosto. Eles desconfiam que a pessoa por trás do rosto enfaixado não corresponde à mãe, principalmente pela mudança repentina de comportamento: de uma mãe amorosa, tornou-se agressiva e rude. Seria apenas a imaginação infantil de ambos ou a pessoa realmente é uma impostora?

Esta produção austríaca colecionou elogios em diversos festivais, entre eles o de Veneza, e abocanhou prêmios em eventos do cinema fantástico como o Fantaspoa, onde faturou a estatueta de melhor roteiro. Nos últimos anos, o cinema europeu tem levado o horror psicológico para os lares familiares: da Grécia, tivemos Dente Canino” (2009) e Miss Violência” (2013), que funcionavam de aperitivos para este enredo. A Áustria, por sua vez, também já brindou o cinema com exemplares neste quesito, como são os casos do interessante Medo” (1983) e o ótimo Violência Gratuita” (1997), este último dirigido por Michael Haneke – um dos melhores cineastas do país -, que pode ser considerado uma das grandes influências da linha narrativa de “Boa Noite, Mamãe”, muito em razão do olhar sobre a violência nas relações humanas como pela narrativa fria e lenta, ainda que a dupla de diretores prefira fazer um estudo psicológico de personagens ao invés de enveredar pelo debate ou análise social comuns das obras de Haneke.

Por isso, uma das melhores qualidades do filme é como ele molda o terror de uma forma diferente do usual, transformando-o em uma realidade dramática real, cujo mistério é construído pelo espectador juntamente com os dois protagonistas infantis à medida que as pistas são apresentadas. Neste sentido, é um trabalho bem minimalista, pois temos apenas três personagens, pouco cenários e diálogos reduzidos.

A valorização do visual é uma das ferramentas utilizadas pela produção para sugestionar o simbolismo da tragédia familiar, com o uso de uma fotografia que contribui para uma sensação de tensão constante, onde jogos de luzes e sombras com seus tons brancos acinzentados são elementos responsáveis pelo sentimento de solidão do filme – que ganha contornos maiores graças aos enquadramentos claustrofóbicos que Fiala e Franz oferecem, associados ao silêncio, pois não há nenhuma trilha a não ser o som ambiente.

O uso de metáforas ajuda a construir ainda mais o suspense psicológico da produção. A ambivalência que permeia toda a relação das crianças com a mãe é marcada pela contradição entre o desejo e a punição. Um dos melhores exemplos desta situação é vista na própria direção de arte, onde o cenário é carregado por quadros de figuras femininas desfocadas que funcionam como uma boa representação da visão das crianças em relação a mãe. Neste ponto, “Boa Noite, Mamãe” guarda uma interessante leitura em como elabora a dualidade da imagem simbólica entre a mãe e as crianças, na qual o bondoso e o maléfico convergem ao extremo de acordo com a situação.

Esta própria dualidade é vista também na narrativa. O primeiro ato é mais lento, valorizando a atmosfera de suspense, enquanto no segundo momento o tom mais explícito adquire forma, que culmina no ato final extremamente angustiante, de efeito opressor incômodo. Infelizmente, parte desta boa ambientação perde a força pela própria mise-en-scène, que entrega mais que o necessário, onde a previsibilidade do roteiro impede a assimilação melhor da história – a reviravolta ou revelação final é percebida no primeiro ato, ainda que os cineastas manipulem o espectador com pistas falsas apenas para tirar o foco da situação.

Neste quesito falta habilidade para ambos conduzirem a linha narrativa longe das escolhas e soluções óbvias, algo que Haneke é um gênio em saber manipular e brincar com as nossas emoções. A performance do trio de protagonistas é intensa. Os dois garotos são ótimos atores, pois convencem tanto pela postura de inocência quanto na ação hostil quando enfrentam a mãe. Já Susanne Wuest também se destaca pela presença fálica e castradora, oscilando entre o assustador e o amável.

Por fim, visualmente, como suspense psicológico, há muito para se valorizar em “Boa Noite, Mamãe”. Constrói com qualidade a linha tênue entre a fragilidade materna e a desestrutura do seio familiar. Pena que o roteiro não acompanhe de forma intrigante grande parte da atmosfera visual, e neste caso não tem a mesma força de outras obras que caminham pelo lado obscuro do imaginário infantil, como é o caso da obra-prima A Inocente Face do Terror”, de Robert Mulligan, e o cultuado “Não Adormeça”, de Richard Lang. Ainda assim, é digno de respeito por mostrar que nossos maiores medos e temores podem residir nas figuras que mais amamos.