Há uma série de elementos que tornam “Boi Neon” um interessante exemplar do cinema brasileiro contemporâneo. Em primeiro lugar, ele segue o que já podemos considerar como uma temática tradicional do cinema brasileiro, que é a vida difícil na região interiorana do Nordeste.

No início dos anos 1950 tivemos o sucesso de “O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953); posteriormente, uma das fases do Cinema Novo focou justamente nas disparidades sociais do agreste em filmes como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha, 1964); e no cinema da retomada, a releitura desse universo impregnou outro ponto alto com “Central do Brasil” (Walter Salles, 1998). É também a mescla de ficção e realidade que surge com essa temática outro ponto abraçado pelo novo longa de Gabriel Mascaro.

Em “Boi Neon”, acompanhamos o estranho núcleo formado por trabalhadores do universo da vaquejada. Um deles, Iremar (Juliano Cazarré) tem o sonho de produzir roupas e mudar de vida, o que por vezes causa estranheza aos demais, tal como o colega Zé (Carlos Pessoa). A pessoa mais próxima a Iremar é Galega (Maeve Jinkings), que dirige o caminhão de transporte dos bois e serve de modelo para os modelos que o colega confecciona em uma máquina de costura improvisada. Junto ao bando segue a filha de Galega, Cacá (Aline Santana), que aprende cedo a dureza da vida no sertão.

O aspecto documental de “Boi Neon” não vem da câmera na mão que hoje marca o grande cinema americano quando quer transparecer “realidade” (até filmes de super-heróis como “Capitão América: Guerra Civil” usam o recurso com abundância). Mascaro opta, pelo contrário, em vários momentos em que os planos se prolongam, mostrando situações que normalmente o corte da montagem se imporia, caso o filme seguisse um padrão mais tradicional. Nesse sentido, o senso de realidade surge justamente pelo não-corte, que destaca o cuidadoso trabalho de imersão do elenco, que convence na mistura de atores profissionais e iniciantes/amadores, com destaque para a pequena Aline Santana, que rouba algumas cenas ao peitar, de igual para igual, os adultos que a rodeiam, uma vez que o núcleo em que a criança se encontra não parece ter nenhum tipo de hierarquia para além da autoridade da mãe.

Qual o seu papel?

Outro ponto digno de nota em “Boi Neon” é a forma como ele trabalha os papeis de gênero. Temos Iremar, vaqueiro rude que preenche facilmente vários itens do que se espera socialmente encontrar em um homem heterossexual e que, no entanto, tem como ambição desenhar e confeccionar roupas femininas. Isso, porém, não o faz “menos homem” e nem conflita, em termos temáticos, com sua profissão atual, pois vemos em vários momentos como as cores, texturas e formas dos animais e da natureza o inspiram. Em duas cenas distantes entre si, vemos como o personagem é apresentado em confundir essa subversão com identidade de gênero: temos, num momento, Iresmar pegando uma revista pornográfica e desenhando um modelo de roupa por cima do corpo nu da modelo e, em outro momento, ele mantém uma acalorada relação sexual com Geise (Samia de Lavor), marcada pela demonstração de desejo de ambos.

Essa subversão também pode ser vista na personagem de Jinkings, Galega. Ela nunca é apresentada no filme como diferente de seus colegas homens: não é exposta como objeto de desejo deles, nem colocada em condição inferior. Não obstante, ela é a motorista do caminhão que os transporta, sendo, de certa forma, responsável por eles e pelos animais. Os únicos momentos em que seu gênero e identidade sexual se colocam é quanto ela usa os modelitos criados por Iresmar trabalhando ocasionalmente como dançarina (numa exposição mais da praticidade de ganhar dinheiro com isso que demonstração de desejo) e quanto ela decide transar com o vaqueiro que se junta posteriormente ao bando, Júnior (Vinícius de Oliveira).

Não por acaso, Júnior também desafia convenções a partir de sua vaidade: mantém os longos cabelos alisados com chapinha, usa aparelho nos dentes apenas por achar “bonito” e se veste de forma mais arrumada que os colegas. Em suma, Júnior é nada mais que um reflexo, dentro das possibilidades limitadas do universo da trama, do homem moderno, que enfrenta menos resistência social para sua vaidade e apreço ao físico. Este último é, aliás, um elemento que se relaciona de forma curiosa ao filme, pois seja na vaidade de Júnior, seja no design de moda de Iresmar, tem-se na valorização do corpo (humano ou animal) como uma forma de autorrealização.

Dinheiro faz tudo rodar

Sem utilizar nenhuma forma de fala ou fato mais explícito para trazer a questão dos papeis de gênero à superfície de “Boi Neon”, Mascaro consegue ainda aprofundar os motivos da subversão destes através de como seus personagens lidam com o dinheiro. Dinheiro é uma preocupação constante, seja no preço das calcinhas fio-dental que Galega barganha, seja na motivação que leva Iresmar e Zé a masturbar um cavalo com pedigree para vender o sêmen, seja na birra que Cacá faz quando a mãe não pode lhe dar o que ela mais quer: um cavalo.

Nesse sentido, os anseios e desejos dos personagens se apresentam a partir da incapacidade deles em conseguir obter uma roupa, um animal, uma pequena empresa… e assim percebemos que tanto Iresmar quanto Galega buscam uma alternativa de vida melhor através da “troca de papeis” masculino/feminino. Não se trata de um ato de rebeldia, e sim de necessidade.

Para além disso, a dureza que percebemos se formar na personalidade da menina Cacá também é sintomática: ela se adapta ao ambiente hostil, no qual pode disferir palavrões e discutir com adultos com um nível de formação praticamente igual ao dela, embora às vezes lhe escape algo ainda de pueril, como no momento em que demonstra querer conhecer o pai ou quando brinca com um cavalo de plástico entre os bois. É o dinheiro, no entanto, o que faz o mundo dos personagens rodar, e só o que pode molda-lo aos seus gostos; na falta dele, tem-se espaço apenas para trabalho e supressão de desejos mais primitivos, como o sexual. Por conta disso, é emblemática a sequência que se passa num leilão de cavalos: se os animais são tratados apenas como mercadoria, seres humanos como Iresmar, Zé e Galega são menos que isso, como bem comprova a saída de cena de Zé, que é afastado do grupo a desejo do patrão, que o coloca para trabalhar em outro posto, o que reconfigura o núcleo que, por vezes, ensaiava-se como familiar.

Com subtextos tão ricos, “Boi Neon” coloca-se como uma evolução na curta filmografia de Gabriel Mascaro. A maturidade com que ele trata seus temas sem ser panfletário, o viés naturalista (trabalhado na bela fotografia de Diego García, de “Cemitério do Esplendor”) e os espaços para momentos que beiram o onírico em meio a uma ambientação desoladora fazem jus ao sucesso de crítica que o longa conquistou em sua carreira de festivais ao redor do globo.