Imagine este cenário: um novo governante assume o poder, muda leis trabalhistas, greves se alastram pelo país e cada vez menos setores como arte e cultura são debatidos. Parece familiar? Vinte anos atrás, “Billy Elliot” mostrava exatamente este contexto, rememorando a década de 1980 na Inglaterra. Desde então, os questionamentos levantados pelo filme se renovam a cada novo olhar sobre ele, tornando-o um clássico deste século.

O diretor Stephen Daldry aborda o governo de Margaret Thatcher na Inglaterra a partir da história de Billy Elliot (Jamie Bell). O personagem-título se interessa pela dança enquanto o pai (Gary Lewis) e o irmão (Jamie Draven) aderem a uma greve contrária às decisões do governo de enfraquecer o movimento sindical e privatizar mineradoras. Assim, Billy passa a enfrentar sua família e os preconceitos da época para desenvolver sua paixão.

Antes de tudo, “Billy Elliot” possui uma ótima construção de roteiro por Lee Hall. Mesmo com um cenário delicado e complexo, as associações que remetem a este fator são feitas de forma sutil e eficiente. Assim, a história do protagonista continua sendo a força motriz da produção, abordando muito bem os conflitos de Billy e os personagens secundários.

Além da greve, é possível notar que o núcleo familiar de Billy compartilha um luto nunca superado. A morte da mãe se perpetua no tratamento ai pai, nas ações impulsivas de seu irmão e na melancolia constante do protagonista. A mãe de Billy também é sempre lembrada por meio do piano, e é justamente a sonoridade do instrumento que o atrai para o ballet. As relações do protagonista no meio escolar também são limitadas a dois amigos com problemas familiares. Mesmo com a motivação de seu pai, Billy também não se identifica com o boxe, esporte que tentou praticar, encontrando maior motivação na dança devido ao sentimento de recordação materna ao exercer a prática.

Cenário histórico presente

Além dos conflitos pessoais de Billy, o cenário político e trabalhista que sua família enfrenta também perpetuam motivações na sua construção. A adesão do pai e irmão à greve dos trabalhadores de mineradoras, tornando os protestos para do cotidiano familiar. Como muitas das manifestações eram reprimidas pela violência policial, violência institucionalizada acaba se fazendo presente na vida do jovem dançarino.

Como dito anteriormente, a presença deste contexto não se sobrepõe à história do seu protagonista, na verdade, ela se torna um fator diferencial e motivador. Para manter esta sutileza, além de contar com cenas de protesto e uma grande presença policial na vizinhança de Billy, o filme reforça sua mensagem com cartazes e pichações entre as locações que ele passa.

O trabalho de edição de som e da trilha sonora ajuda a amplificar este contexto social do filme. Seja pelas sirenes a músicas com letras simbólicas, a composição sonora enfatiza os conflitos externos e internos de seus personagens. Apesar de tratar sobre um estilo clássico de dança, poucas vezes escutamos uma trilha remetendo ao ballet: o grupo britânico T-Rex, por exemplo, embala grande parte da vida de Billy e de suas danças, permitindo ir de um canção como “I Love to Boogie” até “Children of the revolution”.

Dança como fuga

Em meio a esta vivência caótica, Billy encontra no ballet uma fuga de sua realidade. Um segredo partilhado com poucos que não pode chegar ao conhecimento de sua família. Pela intuitiva trilha sonora e por feições de Billy, percebe-se que a dança lhe apresenta um mundo novo e, da mesma forma, o liberta da raiva e violência perpetuadas em sua mente.

Desta forma, as cenas de dança possuem um tom tanto de inspiração quanto de raiva. Na verdade, grande parte dos momentos musicais em “Billy Elliot” aparenta ser uma consequência dos conflitos presenciados e é em meio ao sentimento de raiva que ele encarna a coragem de dançar para seu pai, um dos grandes pontos altos do longa.

Além de não ter apoio em sua casa, todo cenário da cidade na qual vive não contribui para seu futuro na dança. Suas aulas são ministradas em um ginásio, por uma professora (Julie Walters) apresentada como um personagem com desvios de caráter, que fuma enquanto dá aula e chama atenção de suas alunas de forma extremamente grosseira.

Novamente, o status de clássico sobre o ballet é desfeito no filme, importando apenas o que a dança representa para Billy: libertação. Este sentido não aparece como fuga de sua casa ou cidade, afinal, ele pondera sobre a oportunidade de se mudar e estudar no Royal Ballet, mas, sim representa uma válvula de escape de seus problemas, um distanciamento momentâneo de sua realidade, sendo acionada durante seus piores momentos.

Debate sobre gênero

É claro que falar sobre um menino ou homem praticante de ballet nos anos 1980 gera uma discussão sobre sua sexualidade. Este é, afinal, o grande argumento levantado sobre seu pai: se Billy é ou não gay com 11 anos de idade. Apesar do personagem negar sua homossexualidade, o debate sobre gênero se torna constante no filme, sendo levantado por outros personagens.

Para Billy, o ballet não tem nada a ver com seu gênero, posição que ele mantém até o fim. Entretanto, seus amigos e parentes constantemente o questionam sobre o assunto sempre com argumentação de “dança é feita para meninas”. Para seu pai, é extremamente complicado entender e aceitar a relação de Billy com a dança, ficando restrito à questão do gênero na maior parte do filme.

Em contrapartida a esta censura vinda da família, o amigo de Billy, Michael (Stuart Wells), mostra justamente a desconstrução de gênero. Apesar de possuir a mesma idade do protagonista, ele experimenta as roupas de sua mãe e irmã e usa maquiagem como uma prática comum, o que gera estranhamento no protagonista e o ajuda a enfrentar melhor os questionamentos de seu pai. Da mesma forma, sua amiga Debbie (Nicola Blackwell), também praticante de ballet, o motiva a seguir em frente na dança, citando bailarinos que se tornam inspirações para Billy futuramente.

Em toda cidade e com pessoas próximas, o debate parece continuar presente, que se Billy faz ballet é gay por consequência. A melhor parte desta abordagem no filme é a falta de uma resposta definitiva: assim como para Billy, não importa para o longa se ele é gay ou não, porém, a trama assume que é relevante levantar o debate sobre preconceito contra homossexuais e restrições de gênero em esportes.

O que torna o filme tão bom?

Ao abordar nuances tão diferentes, “Billy Elliot” apresenta a qualidade essencial para um clássico: se reinventar a cada nova exibição. Um filme feito 20 anos atrás que fala de acontecimentos de 40 anos atrás e se mantém relevante atualmente se mostra uma ótima pedida para refletir sobre diferentes temas como política e gênero.

Para além de todas as temáticas relevantes, o filme também possui a qualidade de não ser demasiadamente pretensioso, lhe permitindo articular cenas simples e simbólicas. Muitos momentos se estruturam a partir da dinâmica entre o elenco e seus diálogos, o que não significa uma construção negligente ou comedida. É válido lembrar as numerosas cenas de dança presentes no filme, que não lhe assemelha a um musical, principalmente, por sua proposta de se voltar aos conflitos internos de Billy.

Em suma, se todos os questionamentos de “Billy Elliot” fossem retirados, ele ainda seria uma ótima história sobre um menino descobrindo prazer em dançar. Apesar de falar sobre uma forma de arte, a trama constantemente desconstrói este status de grandiosidade ao apresentar um protagonista que ama ballet, mas sequer conhece a história de “O Lago dos Cisnes”. Assim, contrariando expectativas, a falta de conhecimento do personagem não o impede de valorizar a dança, assim como a despretensão de seu filme não nos impede de revisitá-lo.

Obs: O filme está disponível na Netflix.