• Border” (2018). Direção: Ali Abbasi. Elenco: Eva Melander, Eero Milonoff, Jörgen Thorsson, Viktor Åkerblom

Tina leva uma vida comum: trabalha em um emprego chato como oficial da alfândega, seu relacionamento com o marido já viveu dias melhores, e ela parece triste, pois tem um bom coração e isso não a impede de ser maltratada pelo mundo. Então, um dia, seu cotidiano muda quando ela encontra a sua proverbial “tampa da panela”, um homem misterioso chamado Vore, com quem ela tem praticamente tudo em comum. O leitor, até aqui, poderia achar que se trata de mais uma mera comédia romântica. No entanto, “Border” é um filme, digamos, diferente: Tina tem um rosto grotesco, meio humano, meio animalesco. Ah, e o Vore também. Ela consegue farejar coisas e pressentir a presença de animais. O espectador sente um incômodo estranho só de ver um deles, e a sensação é dobrada quando eles estão juntos na mesma cena.

Baseado num conto de John Ajvide Lindqvist, mesmo autor de Deixe Ela Entrar, esta produção sueca-dinamarquesa dirigida por Ali Abbasi é praticamente uma fábula esquisita sobre a humanidade e o pior dela. Basicamente, todos os personagens são no mínimo mentirosos, quando não criminosos terríveis, exceto pelos “monstros”: Vore é um misantropo completo e tenta trazer Tina para seu lado; para ele a humanidade e os “trolls” – assim ele os define – não podem viver juntos.

Ao abraçar as suas características mais animalescas, Tina se torna mais feliz, e essa transformação é retratada de maneira precisa e com intensidade e humor pela atriz Eva Melander, que consegue transmitir a vida interior de sua personagem mesmo atuando sob camadas de látex – a maquiagem do filme é ao mesmo tempo expressiva e discreta, transformando os personagens em criaturas grotescas, com bochechas caninas e dentes estranhos, mas sem atrapalhar os desempenhos dos atores. E Eero Milonoff como Vore é a outra grande qualidade do filme: Seu personagem é muito marcante e o ator até demonstra se divertir um pouco com sua figura estranha e com o efeito que ela provoca sobre os outros personagens, os “normais” do filme.

POR QUE “BORDER” NÃO CONQUISTA O PÚBLICO?

As aspas são apropriadas porque, de fato, ninguém é muito normal nessa história. E esse é um dos problemas de “Border”: Abbasi investe muito no grotesco, o que acaba diluindo o impacto da trajetória de Tina frente ao mundo. Alguns momentos entre Tina e Vore são realmente bizarros, e os personagens humanos cometendo suas pequenas e comuns atrocidades também são extremos. Em um mundo onde tudo é esquisito demais, a presença de figuras como Tina e Vore nem chama muito a atenção – tanto que, curiosamente, são poucos os instantes na história em que alguém demonstra asco ou medo deles.

Isso evita que o filme se torne profundo ou até emocionante. “Border” é muito mais esquisito do que emocionante – se conseguisse ser as duas coisas, seria realmente uma façanha. Do jeito como é, trata-se de um filme curioso, obviamente: uma curiosidade que possui, no seu cerne – ou ao menos acredita possuir – uma história realmente tocante de auto-aceitação e compreensão, não só de uma pessoa a respeito dos outros, mas também do seu próprio lugar no mundo.

No entanto, essa ideia se dilui, perde um pouco de força, porque na superfície a história é simplesmente esquisita demais, estranha além da conta. Tina é uma ótima personagem e deveríamos nos emocionar mais com a trajetória dela. Não é o que acontece, mas “Border” ainda assim possui certo encanto. Quem sabe, pode até virar cult no futuro.