Já foi dito que cada geração precisa de uma nova tradução de Shakespeare e Dante – ou, entre nós, Machado de Assis. A razão seria que esses autores sempre teriam coisas a dizer para o leitor, bastando à linguagem ser capaz de renovar esses conteúdos.

A máxima parece estar por trás da nova produção dos estúdios Disney, uma versão supernova – e, ao mesmo tempo, teimosamente retrô – de Cinderela, clássica história de Charles Perrault, que, em 1950, já havia rendido uma belíssima animação da empresa. Ante o esplendor do original, aliás, alguns vêm argumentando que o remake seria uma iniciativa supérflua e desnecessária. Pode até ser. Mas o prazer da história, e o capricho da produção, certamente valem o tempo dos cinéfilos sem preconceitos, e revelam um conto de fadas atemporal, feito para deslumbrar os olhos e enternecer os menos cínicos e desesperançosos.

Para quem conseguiu viver sem ver o desenho ou ler o conto: Ella (no filme, a luminosa Lily James) vivia feliz na propriedade dos pais, um casal íntegro e apaixonado (Ben Chaplin e Hayley Atwell), entre brincadeiras e a natureza deslumbrante do reino. Por sinal, o encanto e a bondade da moça são tais que conseguem acalmar até os animais selvagens, e lhe atraem a companhia dos pequenos animais da casa. A felicidade de Ella, porém, acaba quando sua mãe morre, e o pai, solitário e amargurado, acolhe a cruel Lady Tremaine (Cate Blanchett, saboreando o papel de megera) e suas filhas estúpidas, Drisella (Sophie McShera) e Anastasia (Holliday Grainger). Pouco a pouco, elas a transformam de filha e herdeira legítima a prisioneira na própria casa, tendo de limpar, cozinhar e costurar para as intrusas.

Felizmente, por um acaso típico dos contos de fadas, Ella acaba conhecendo “Kit” Charming (Richard Madden), que é nada menos do que o príncipe do reino. À paixão imediata e fulminante, irão se suceder as tentativas de Lady Tremaine de enclausurar a jovem, ao passo que o grão-duque real (Stellan Skarsgård, da série Thor) tenta convencer o príncipe a se casar por interesse, com uma rica herdeira.

Duas coisas chamam mais a atenção na obra: o trabalho exemplar, bastante afinado, do elenco, e a direção de arte, que é de cair o queixo. Da primeira, além da encantadora Lily e do conjunto impecável, duas veteranas roubam a cena: Blanchett, com sua presença imponente e modos histriônicos, é pura malícia na tela, enquanto Helena Bonham-Carter, ultimamente confinada às produções do ex-marido, Tim Burton, faz uma aparição graciosa e memorável, como a fada madrinha de Ella.

Mas é o lado visual o maior deleite do filme. O figurino é simplesmente espetacular: num trabalho meticuloso, a oscarizada Sandy Powell levou cerca de dois anos concebendo as peças vistas em cena, que aludem às opulentas produções de época da década de 1950. Juntem-se a isso os belíssimos sets (por Dante Ferretti, no less) e objetos de cena – a carruagem de Ella, em particular, é extraordinária – e temos um dos filmes visualmente mais arrebatadores do ano.

A direção de Branagh é segura e fluente, algo esperado de um cineasta à vontade tanto no teatro clássico inglês quanto nas superproduções hollywoodianas – para quem não lembra, o primeiro e ótimo capítulo da saga Thor (2011) é dele. Já o roteiro de Chris Weitz – diretor, ao lado do irmão Paul, do primeiro American Pie (1999) e de Um Grande Garoto (2002), e, sozinho, de Lua Nova (2009), o segundo capítulo da saga Crepúsculo – reedita de forma eficiente e, talvez, ainda mais fiel à fonte, o clássico enredo.

No total, temos um filme seguro, sem riscos, entretenimento de qualidade sem maiores pretensões. Mas a leveza e o charme do conjunto – por sinal, um raro conto de fadas assumido, sem a ironia tão típica dos remakes do gênero – fazem de Cinderela um ótimo programa para quem pretende simplesmente se deixar levar pelo encanto de uma trama singela e bem filmada.

Ah, e o curta de Frozen que precede o filme é pura fofice.