Um padrão recorrente em filmes de terror slasher (aqueles em que um cara doidão sai matando adolescentes aleatoriamente) é que as vítimas geralmente têm uma vida sexualmente ativa pré-marital – e, logo, devidamente punida com a morte. Desde o Halloween de John Carpenter até o obviamente reprimido sexualmente Jason Voorhees de Sexta-Feira 13, quem sobrevive no final é quase sempre a heroína virgem e pura, depois de ver seus amigos “libertinos” sendo mortos um a um. O recente Corrente do Mal, escrito e dirigido por David Robert Mitchell, subverte esse clichê tão batido de maneira inesperada e original, inaugurando também um novo tipo de “DST sobrenatural”: uma assombração sexualmente transmissível (ou AST, se assim preferirmos).

Em Corrente do Mal, a adolescente Jay (a ótima Maika Monroe) está saindo com o cara dos seus sonhos – ou pelo menos era o que parecia até que, depois de uma transa no carro, ele a dopa e a submete a uma experiência traumática, explicando-lhe que agora ela é a mais nova vítima de uma maldição, transmitida por meio de relações sexuais (!). De agora em diante, Jay será perseguida por um encosto misterioso que pode tomar qualquer forma, seja um familiar ou um completo desconhecido, e que, apesar de segui-la em marcha lenta, é implacável em seu objetivo de matá-la – daí o título original e mais eficiente, It Follows.

Além de ironizar a punição sexual dos filmes slasher, o longa de David Robert Mitchell implica em um questionamento moral à protagonista: passar ou não a maldição adiante e livrar sua própria pele, sabendo o que vai acontecer com o próximo infectado? Para a sorte de Jay, seus amigos estarão dispostos a ajudá-la a enfrentar essa força sobrenatural, ainda que ela seja invisível a eles.

O tom de desespero fica claro desde o início do filme, quando acompanhamos a primeira vítima da tal maldição. Antes de tudo, Corrente do Mal investe numa atmosfera pesada, aproveitando-se da melancolia dos subúrbios norte-americanos para instaurar seu clima de tensão constante. Em vez de planos fechados, panorâmicas e enquadramentos mais abertos deixam o medo no ar, uma vez que qualquer figura que apareça se arrastando em qualquer lugar da cena tem o potencial para ser a assombração. Além disso, a trilha fantasmagórica de Disasterpeace, com componentes eletrônicos que remetem ao próprio Halloween, só ajuda a ambientar o clima desesperador em que Jay passa a viver, lembrando uma síndrome do pânico levada a níveis extremos.

É essa ideia de que a ameaça pode estar em qualquer lugar que torna o terror de Mitchell mais eficaz. A ação é comedida, com longos intervalos recheados de diálogos melancólicos em vez de banhos de sangue, mas, quando acontece, é tensa e aterrorizante – um confronto em especial na piscina chega a lembrar o ápice do sueco Deixe Ela Entrar (2008). Já a motivação sexual da criatura misteriosa também ganha contornos de complexo de Édipo quando, em momentos-chave, ela assume a forma dos pais dos personagens.

Aliás, é curioso perceber que os pais, assim como qualquer outro adulto do filme, estão quase sempre ausentes ou não mostram o seu rosto em cena. Ao assumir com frequência um corpo adulto, será a assombração uma metáfora para o medo da morte, desencadeado pela maturidade atingida com o despertar sexual na adolescência? Em um subúrbio marcado pelo moralismo e conservadorismo, como uma das amigas de Jay ressalta em certo momento, a expressão da sexualidade pode ser mais perigosa do que se imagina. Nesse sentido, a atemporalidade do tema e do ambiente encontra espaço na direção de arte, que deixa difícil definir em que período a história se passa: se, por um lado, os protagonistas assistem filmes B em preto e branco em TVs de tubo na sala de estar, por outro, uma das personagens lê O Idiota de Dostoiévski num e-reader em forma de concha.

São essas características diferentes do lugar-comum de filmes de terror que tornam Corrente do Mal mais um grande trunfo do cinema independente, assim como The Babadook no ano passado, mostrando que o gênero não precisa ser formulaico. Não por acaso, o filme ganhou um hype bem positivo da crítica, principalmente a norte-americana. Afinal, é um bom exemplo de que há espaço para ideias originais e bem esquisitonas – e que não deixam de ter aquela boa dose de sustos.