Quem nunca teve medo de monstros debaixo da cama, tempestades ou que algo de ruim acontecesse com a mãe quando criança? Assim como nos filmes de terror, esses medos se encontram mais na cabeça de quem embarca na ideia que no mundo real, e é com esse encontro entre o que tem fundamento e o que é apenas imaginado que o surpreendente “The Babadook”, longa de estreia de Jennifer Kent, brinca e nos apavora.

A trama do filme australiano acompanha a vida complicada de Amelia (Essie Davis). A enfermeira consegue, a duras penas, dividir seu tempo entre o trabalho com idosos e a criação do filho, Samuel (Noah Wiseman) um menino de sete anos que nasceu praticamente durante um acidente de carro que vitimou o marido de Amelia, Oskar (Benjamin Winspear). A criança possui um medo comum, o de dormir sozinho, imaginando toda sorte de monstros na casa, o que de certa maneira reflete o medo de perder a mãe por ser o único vínculo direto que ele possui. O sentimento o leva também a ter um comportamento inapropriado, gerando situações constrangedoras que Amelia, estressada pela rotina pesada, não consegue controlar.

Como se não bastasse todos os problemas, um estranho livro infantil surge no quarto de Samuel. Intitulado “Mister Babadook”, a obra conta a história de um ser sinistro que invade a vida das pessoas até levá-las à morte. A partir da leitura, Samuel fica obcecado pela figura sombria de Babadook, ao passo que estranhos acontecimentos levam Amelia a questionar se a criatura realmente não estaria na casa.

Contar mais que isso seria estragar as surpresas de “The Babadook”. Mais interessante agora seria frisar, primeiramente, como o filme se utiliza corretamente das referências criadas ao longo da história mais que centenária do cinema para criar uma atmosfera original a um gênero atolado de clichês. Dentre elas, destaca-se a figura de Amelia, que segue a tradição da mãe enfrentando um perigo sobrenatural para defender a vida do filho, figura essa retrabalhada de maneira a gerar dúvida no espectador: será que Babadook realmente existe? Ou seria a situação de stress extremo passada por Amelia a real causa dos acontecimentos estranhos? Teria Samuel, ou ela própria, problemas psiquiátricos, intensificados pela causa violenta do luto da família? Deixar essas perguntas pairarem pelo filme dá a ele uma dimensão completamente nova, principalmente se colocarmos em perspectiva a escassa safra de filmes de terror que ganharam notoriedade recentemente como “Invocação do Mal” (2013), no qual o inimigo não gera dúvidas de sua real natureza.

[…] o filme se utiliza corretamente das referências criadas ao longo da história mais que centenária do cinema para criar uma atmosfera original a um gênero atolado de clichês.

Outro item que pode ser considerado uma grata surpresa é o fato de que diversos elementos relativos à fotografia, direção de arte e maquiagem sugam referências anteriores sem necessariamente o resultado se mostrar repetitivo. Dessa maneira, temos, por exemplo, as cores da casa em que se passa grande parte do filme, dominada por tons gélidos de azul e cinza, que muito bem recordamos de filmes como o insosso “Mama” (2011) e tantos outros. A residência é fotografada de maneira a passar a desolação da condição familiar de Amelia e Samuel, mas também de forma a gerar mudanças sutis para expressar o estado mental alterado da mãe, que tem problemas para dormir tanto quanto o filho, ao jogar com a profundidade de campo e com a escolha dos ângulos de câmera, às vezes tão acentuados que dão a impressão de a casa ser tão distorcida quanto um cenário expressionista.

Quase tão emocionante quanto é perceber o uso comedido da trilha sonora instrumental para acentuar momentos de tensão. Ao contrário de boa parte de seus predecessores, “The Babadook” dá atenção quase que total ao design de som em nível mais elementar, preocupando-se menos em jogar o volume nas alturas com graves sons de violino quando algo ruim acontece e mais em sutilezas como o sussurrar da expressão “baba ba dook dook dook” que dá início à espiral de medo de Amelia e Samuel quando eles lêem o livro juntos e que, aos poucos, converte-se em numa voz disforme e arrepiante. Esse e outros detalhes compõem o cenário da casa e sua tentativa de dominação pelo inimigo, que pouco aparece de fato no filme.

E esse é outro ponto no qual “The Babadook” ganha o público: o fato de seu personagem-título ser quase que ausente aos nossos olhos. Verdade seja dita, o filme seria ainda mais intrigante se ele de fato nunca aparecesse, deixando-nos com a pulga atrás da orelha até o final. Porém, a escolha de mostrar sua “interação” com Amelia e Samuel apenas no último terço do filme é elaborada de maneira a assustar tanto pelo que sugere quanto pelo que é visto explicitamente, da mesma maneira que os medos que temos quando crianças e que ficam arraigados em nossa mente ao longo da vida, nem que seja para lembrarmos o quão absurdos eram. A conexão com esse sentimento, quase que uniforme ao público, é reforçada o tempo todo em “The Babadook”, que é brincado com poucos, mas chocantes momentos de violência gráfica mais explícita. Além dela, a própria figura do Babadook tem algo de familiar e, ao mesmo tempo, assustador: sua silhueta lembra a do Nosferatu que Max Schreck interpretou em 1922, e seu poder se assemelha ao do diabo de “O Exorcista” (1973).

Essas referências fílmicas não parecem explícitas em “The Babadook”. O motivo mais óbvio seria o fato da obra ser uma adaptação do curta “Monster” (2005), também de Kent. Além disso, o filme é recheado de trechos de filmes diversos, que surgem quando Amelia passa as noites zapeando pelos canais de televisão enquanto sua mente não é dominada por sonhos e pesadelos. Vê-se então a figura disforme do lobo mau de um antigo desenho animado, um trecho de “I Tre volti della paura” (1963) e vários curtas de Méliès, incluindo “Le Livre Magique” (1900), no qual Babadook surge rapidamente inserido na imagem. A referência à Méliès é ainda mais marcante quando relacionamos a ele o fato de que o pequeno Samuel adora mágica.

Dentre tantos elementos que, intercalados, fazem “The Babadook” se destacar para além do seu gênero cinematográfico, a atuação de Essie Davis merece igual atenção. Difícil acreditar que seja o primeiro trabalho da atriz no cinema, tamanho o cuidado com a construção multifacetada que ela confere à Amelia. Nada além de sua expressão facial, aliada à leve mudança de iluminação e maquiagem, marca ao espectador o momento em que passamos a acreditar que Babadook tem o controle sobre a mente da personagem, e ainda assim Davis tem total domínio da transformação. Da mesma maneira, as diferentes camadas atreladas à personagem (a mãe zelosa e a imperfeita, a mulher solitária e sem marido, a insone, a louca ou a possuída) podem ser facilmente compreendidas pelo público sem nunca apelar a didatismos.

Não por acaso, “The Babadook” recebeu destaque na lista de melhores do ano da Boston Online Film Critics Association. Também chamou a atenção ao ganhar como Melhor Filme de Estreia no New York Film Critics Circle Awards, para então virar fenômeno na internet. A obra é uma assustadora, porém agradável surpresa para o gênero terror nesse final de ano, entrando fácil em listas de melhores de 2014.