Existe O Iluminado de Stephen King e O Iluminado de Stanley Kubrick, e eu sempre digo às pessoas para experimentarem os dois. O de King é um livro de terror sobre aprender a vencer os próprios demônios, principalmente alcoolismo e abuso. O de Kubrick é um filme de terror sobre como é frágil a nossa percepção da realidade, e sobre o mal que parece ser inerente ao homem. Ambos partem da mesma premissa básica, mas chegam a resultados completamente diferentes. Um é, no fim das contas, emotivo e otimista; o outro é frio e cínico. Ambos têm seu valor e são MUITO assustadores. Mas é verdade que o de Kubrick suplantou o de King no imaginário popular: em parte porque o cinema quase sempre alcança muito mais pessoas que a literatura, em parte porque as imagens criadas pelo cineasta continuam sendo muito poderosas.
King nunca escondeu que não curte o filme – muito provavelmente porque a história é bem pessoal para ele e o enfoque de Kubrick, como se viu, acabou sendo muito diferente. Ele escreveu a continuação do livro, Doutor Sono, cuja adaptação para as telas pelo diretor Mike Flanagan chega como um verdadeiro milagre: ela consegue casar as sensibilidades opostas de King e Kubrick, respeitando tanto o filme O Iluminado quanto a escrita do autor.
Em Doutor Sono, reencontramos Danny Torrance (vivido por Ewan McGregor) décadas após sua aterrorizante experiência no Hotel Overlook. Inicialmente um sujeito perdido na vida – até vermos um pouco mais da sua infância –, ele se encontra ao começar a trabalhar como enfermeiro, usando sua “iluminação” para ajudar pacientes em estado terminal. Mas sua existência razoavelmente equilibrada – afinal, ele continua vendo… coisas – é perturbada quando entra em contato com Abra (Kyliegh Curran), uma garotinha iluminada como ele, e descobre que ela está sendo perseguida pelo culto liderado por Rose (Rebecca Ferguson), que se alimenta de crianças “iluminadas”. Essa revelação vai levá-lo a encarar os fantasmas – literais – do seu passado…
Direção inspirada de Flanagan
Vamos tirar logo do caminho os aspectos mais fracos do filme, certo? Bem, a história de Doutor Sono tem sim seus pontos meio… Bobos. Os vilões, que se intitulam o “Nó”, falam em roubar o “vapor” das crianças em conversas que ficam a um passo da pieguice, e visualmente lembram um pouco até os vampiros de Crepúsculo…
Mas é aí que entra a inteligência da condução de Flanagan, cineasta talentosíssimo que comandou grandes obras de terror nos últimos anos – O Espelho (2013); Jogo Perigoso (2017); outra adaptação de King, e A Maldição da Residência Hill (2018). Para começar, a exposição de informações no roteiro – também de Flanagan – é totalmente visual. Entendemos o que o Nó faz visualmente, sem precisar de diálogos expositivos, assim como também compreendemos a comunicação entre Danny e Abra pelo quadro-negro, sem demora. Aos poucos nos acostumamos com a estranheza da história e de alguns personagens, sem que seja preciso que ela nos seja explicada didaticamente, e quando chegamos na hora em que o culto captura o garotinho vivido por Jacob Tremblay, de O Quarto de Jack (2015), é difícil não ter medo daquelas figuras que antes pareciam só caricaturas.
Ajuda também o fato de Rebecca Ferguson, diabolicamente divertida, e Zahn McClarnon como o Pai Corvo, estarem inspirados, assim como Curran. Mas a melhor atuação é mesmo a de McGregor, uma composição sensível e inteligente que serve como âncora do filme e o impede de cair no ridículo. Além disso, Flanagan conta sua história com calma e precisão, sem pressa e alternando entre vários núcleos narrativos que se encontram com o tempo – o que não impede alguns furos de roteiro quando as coisas começam a esquentar… Ele também tem alguns momentos inspirados de direção, com cenários giratórios, planos do alto que remetem a uma visão divina (será?), e claro, a sua impressionante recriação de cenas e momentos do filme de Kubrick, com direito a escolha de sósias razoáveis de Shelley Duvall, Danny Lloyd e Jack Nicholson.
FUGA DO CLICHÊ NOSTÁLGICO
Por todo o longa, vemos a direção e o roteiro prestarem homenagens ora à visão de King, ora ao filme de Kubrick. O ato final é quando Danny precisa encarar o passado e a trama de King se mescla ao horror criado por Kubrick para o seu filme, e Mike Flanagan faz com que estes dois “pais divorciados” se encontrem, discutam a relação e cheguem a um entendimento. De quebra, faz um remix de momentos icônicos de O Iluminado que flertam com a noção de nostalgia e a tendência atual de filmes novos que se apoiam em obras do passado. Mas de algum modo, Flanagan escapa disso, de fazer do final de Doutor Sono uma mera “festa da nostalgia” como alguns filmes recentes são. Ele consegue conciliar a emoção de King e a frieza cerebral de Kubrick e ainda colocar um pouco do seu estilo, uma mescla criativa do sobrenatural com o emocional, como vimos em seus trabalhos passados. Isso não é uma façanha pequena.
E de quebra, ainda mostra aqui e ali uns momentos assustadores e incômodos, como aqueles envolvendo a mulher na banheira e as mortes de crianças. Por toda a duração de Doutor Sono, sentimos a sensação de que filme e seus cineastas estão pisando em solo sagrado, sob perigo de despertar a ira dos deuses do cinema ao mexer com um clássico não só do gênero terror, mas do cinema em geral.
Felizmente, apesar de um ou outro problema, todos, e o espectador, se salvam: Doutor Sono é muito melhor do que tinha direito a ser e passa longe de ser uma mera exumação de Stanley Kubrick, por mais que ele ainda projete uma sombra enorme (ou seria um fantasma?) sobre esta continuação. É um filme “espiritual” assombrado por dois grandes fantasmas, mas assim como seu protagonista, é destemido o suficiente para encará-los. Flanagan não é Kubrick, mas é um ótimo médium.