Adaptações são sempre complicadas: Se o cineasta que se dedica a adaptar uma obra já existente for muito subserviente a essa obra, o público pode achar que faltou ousadia, que ele foi escravo da obra, que “jogou pelo empate”; se mudar demais, pode deixar os fãs da obra original irados e até desvirtuar o conceito dela. É só perguntar a Stephen King como ele se sente a respeito de O Iluminado de Stanley Kubrick – por mais que discordemos dele…

Aí surge algo como a série A Maldição da Residência Hill, da Netflix. É um trabalho curioso, uma verdadeira reimaginação: pega ideias básicas e a ambientação de um dos mais famosos romances de casa assombrada de todos os tempos, A Assombração da Casa da Colina de Shirley Jackson – publicado em 1953 e que já deu origem a dois filmes, Desafio do Além (1963) de Robert Wise e um dos melhores filmes de terror de todos os tempos; e A Casa Amaldiçoada (1999), este, um completo desastre – e os atualiza e os coloca sob outro contexto.

A série da Netflix é a história de uma família. Sempre alternando entre dois períodos históricos, vemos os Crain vendo na Casa Hill em 1992 e no tempo presente, quando eles ainda são atormentados pelo passado aterrorizante. Steve (Michiel Huisman, de Game of Thrones) transformou a experiência numa bem sucedida carreira de escritor de terror; Shirley (Elisabeth Reaser, e o nome da personagem não é por acaso) virou dona de agência funerária; Theo (Kate Siegel) é psicóloga, lésbica e não se conecta emocionalmente com ninguém. E os gêmeos Luke (Oliver Jackson-Cohen) e Nell (Victoria Pedretti) estão perdidos, ele no vício em drogas e ela pelos terrores da infância. Ao mesmo tempo, acompanhamos a versão do passado desses personagens e os aterrorizantes e estranhos dias na Casa Hill ao lado dos pais (Henry Thomas e Carla Gugino). Quando uma tragédia assola os personagens no presente, a família se vê reunida e novamente atraída pela casa.

Mexer no clássico de Shirley Jackson deve causar tanto medo quanto entrar na Casa Hill, mas a façanha do diretor Mike Flanagan – que dirige todos os 10 episódios e roteiriza vários deles – demonstra que ele é um sujeito corajoso. E talentoso: afinal, Flanagan vem se mostrando um ótimo artesão do terror, tendo realizado, entre outros, O Espelho (2013), Hush: A Morte Ouve (2016), Ouija: A Origem do Mal (2016), e Jogo Perigoso (2017) – todos, no mínimo, bons. Sua reimaginação da história clássica até tropeça de vez em quando, mas é sem dúvida mais interessante de se ver do que mais uma adaptação literal do livro – além disso, sinceramente, é melhor admitirmos logo que ninguém nunca fará um filme desse livro melhor que o de Wise.

Como já demonstrava em seus filmes anteriores, Flanagan retoma aqui seu controle dos momentos tensos: o trabalho sonoro, a inteligência dele ao incluir elementos estranhos nos enquadramentos e os jump scares cuidadosamente preparados sempre rendem grandes sustos na série. Assista com as luzes apagadas… E, claro, não seria uma adaptação de respeito se a casa não fosse recriada de maneira superlativa pela direção de arte: As estátuas, as maçanetas com rostos e a escadaria em espiral não poderiam faltar.

Mas acima de tudo a casa ganha vida graças aos atores e à mise-en-scene de Flanagan. Não há nenhuma nota falsa nas atuações – até as crianças tem ótimos desempenhos. Os destaques do elenco acabam sendo Gugino, Siegel, Pedretti, Reaser e Timothy Hutton como a versão mais velha do pai da família. E é curioso lembrar como grande parte deste elenco já trabalhou com Flanagan em projetos passados…  A direção é precisa nos momentos de horror, mas há outros momentos de brilhantismo como no episódio 6, constituído de vários planos-sequência, com alguns deles proporcionando saltos entre as duas linhas de tempo da história.

Quanto ao roteiro, a influência de Stephen King é clara: Alguns momentos na casa evocam o clima de vigília e paranoia de O Iluminado, enquanto os saltos entre períodos de tempo lembra It: A Coisa. É verdade que a série demora um pouquinho para engrenar: Cada episódio, estruturalmente, é centrado num dos personagens, mas alguns são mais interessantes que outros. Steve, apesar de tecnicamente o protagonista, acaba sendo uma das figuras menos cativantes do seriado, e esse fator atrapalha nosso envolvimento. Há uma dose de clichês espalhados aqui e ali e até alguns monólogos deixando explícitos certos temas da história.

Porém, embora os episódios 1 a 4 sejam bons, é a partir dos extraordinários episódios 5 e  6 que a série realmente engrena. Uma tristeza se apossa da história, a ponto de ela se tornar mais forte que o terror e os jump scares: A tristeza de personagens presos a uma casa, a uma infância, a pessoas do passado que não conseguem deixar para trás.

A história concebida para a série é ambígua: Pode até ser vista como otimista, mas outra interpretação, mais pessimista, pode ser feita: quando vemos na série pessoas conversando com fantasmas, sendo salvas por eles, a fina linha entre vida e morte e aqueles personagens tão tristes, é meio difícil não concordar com uma das falas do escritor Steven: “Um fantasma é, acima de tudo, um desejo”. É esse desejo, esse sentimento, que move os personagens de A Maldição da Residência Hill, assim como movia a Nell do livro de Jackson e a do filme de Wise. Um desejo de conexão, mesmo que seja com algo do outro lado da existência e até potencialmente maligno. Quem diria, A Maldição da Residência Hill começa assustando o espectador e termina emocionando-o. Fazer isso, ao mesmo tempo tendo a coragem de contar uma história diferente – mas fiel ao mesmo conceito emocional da obra original – demonstra talento. E o próximo projeto de Mike Flanagan será Doutor Sonho, adaptação do livro de Stephen King que é sequência de O Iluminado. Não sabemos o que ele fará com essa obra, mas provavelmente será algo, no mínimo, inesperado.