O chamado cinema independente europeu costuma dividir opiniões. Há aqueles que não o apreciam justamente por conta de sua rigidez narrativa e por seu distanciamento das fórmulas hollywoodianas, tão presentes em tempos que filmes de super-herói dominam as bilheterias mundiais. Entretanto, para outros, é essa obstinação em transpor para as telas o lado mais duro da trajetória de seus personagens o que cativa. Em “Girl”, o diretor estreante Lukas Dhont é eficaz em mostrar de forma delicada e inflexível, quando necessário, a jornada de Lara (Victor Polster), uma adolescente transexual.

Uma das características que, particularmente, me chama atenção nos dramas europeus é sua capacidade de traduzir o que é a vida. Nem sempre algo acontece, nem sempre quando achamos que o final chega, ele vem acompanhado de coisas boas e positivas. E este é um dos trunfos do trabalho de Dhont, que também assina o roteiro. O cineasta belga se aproxima muito da linguagem documental para contar a história de Lara. Na verdade, é o seu olhar que se apropria do documental para dar a obra um teor íntimo, já que ele oscila entre a sensibilidade e a crueldade.

A sensação que a construção fotográfica de Frank van den Eeden passa é de que estamos invadindo o espaço de Lara e acompanhando descaradamente seus momentos pessoais, aqueles em que a personagem se esconde dentro do casulo à espera do instante certo para desabrochar. Talvez, esta metáfora seja a que melhor descreve a condição da protagonista de “Girl”: ela se esconde do mundo enquanto aguarda e se prepara para se tornar aparentemente quem realmente é.

Desse modo, o olhar de Eeden torna o público uma testemunha das dores físicas e emocionais da adolescente. Aos poucos, vamos adentrando pelas brechas da porta de seu quarto e observamos consternados às reações silenciosas e violentas ao desprezo gerado pela constatação de fisicamente não se sentir apta.

Dhont aproveita essa atmosfera de aproximação e intimidade para transformar o ato de contemplar a vivência da personagem em uma agressão. O incômodo de Lara consegue quebrar a quarta parede e se instalar do outro lado da tela. Fotografia, iluminação e trilha sonora são importantes para a ambientação e angústia constante em seguir a rotina de Lara.

Os planos fechados nela, as cores a identificar seu estado de espírito e o som conduzem o espectador a quase tocar o seu sofrimento. Não é preciso palavras ou diálogos para compreender o quão dolorosa é a situação que a personagem se encontra e as escolhas que faz para sair de sua condição. E a dor que se estende a nós é semelhante a que cerca o pequeno núcleo familiar de “Girl”.

Esse norteamento que torna o filme uma referência na temática. As decisões narrativas dão um tom sensível à obra e sem a necessidade de maniqueísmo. Os dilemas internos de Lara se expandem para discussões maiores e com maior abrangência: eles expõem o fator humano. Lara é uma menina como outra qualquer e “Girl” se preocupa em apresentá-la desta forma e a transformar em um indivíduo que está a procura de sua identidade.

A jornada de Lara é ainda mais deslumbrante devido ao empenho de Victor Polster. O ator e bailarino, também estreante, conquistou o prêmio de interpretação da seleção “Un Certain Regard” no Festival de Cannes em 2018 pelo trabalho. Ele dá a personagem uma carga dúbia. Sua fisionomia nunca está plena, parece sempre a espera da próxima dor, mesmo que esteja pronto a aceitá-la.  Sua entrega para cenas emocionalmente difíceis como o ato final e a descoberta do que faz com seu corpo para dançar na companhia de balé é digna de aplausos.

 Polster compõe o papel com força e convicção. Merecedora de reconhecimento também é sua interação com Arieh Worthalter, que se doa e transpõe veracidade na troca de embates e carinho entre o pai e a filha. Apenas confirmando um dos fundamentos da magnitude da estréia do cineasta belga.

Muitos realizadores que procuram retratar a temática escolhida por Dhont deveriam se inspirar em “Girl”. O filme é sensível e afetivo, mas não deixa de ser tangível e cruel. Uma produção de profunda beleza e apuro estético. “Girl” está disponível no catálogo da Netflix e é, sem dúvida, um filme que precisa ser visto e sentido.