Aldemar Matias é um dos principais expoentes do Amazonas no cinema de não-ficção hoje. Seu filmes têm em comum um olhar atento e curioso, mas que respeita a noção de distanciamento para extrair o que de melhor surge das histórias que pretende contar. É exatamente essa segurança na condução da obra que traspassa “La Arrancada”, a estreia em longa-metragem do diretor.

No filme, acompanhamos a introspectiva Jennifer, uma jovem atleta cubana envolta nos dilemas de seguir a tradição esportiva da ilha ou vislumbrar outras possibilidades em meio à transição política e cultural de Cuba. Seu contraponto é a mãe, Marbelis, que lidera uma equipe de fumigação e ecoa, através de sua personalidade marcante, reflexos das vivências num país diferente daquele que a filha conhece.

Do político e do íntimo

É através da intimidade do núcleo familiar, composto ainda pelo irmão Yeyo, que o contexto histórico surge como temática do documentário. Nesse sentido, o filme só funciona porque Matias consegue, de fato, grande proximidade com a família. Sua câmera surge, então, não como invasora do espaço da casa ou dos encontros de Jennifer e os amigos, mas como uma companheira silenciosa que, embora deixe a todos cientes de sua presença, em nada parece incomodar.

Isso é perceptível em vários momentos. Num deles, um companheiro de treino de Jennifer cita comentários de terceiros sobre a presença da câmera ali, isso logo depois de captar uma cena que, através do silêncio ofegante da jovem, machucada e com problemas para treinar, exprime, sem palavras, as dúvidas e medos num rosto que olha para o horizonte ou para o chão. Reforça-se essa intimidade entre câmera e personagem a ausência de trilha sonora instrumental, imagens de arquivo, cartelas e outros recursos para guiar o espectador na narrativa.

Nesse sentido, é curioso observar como o registro de imagens resvala para além da imagem da câmera de Matias. Munidos de smartphones e sempre em busca do melhor sinal de wifi, os cubanos que vemos em “La Arrancada” mostram-se cada vez mais globalizados, em outra das várias contradições cotidianas da ilha. Nesse sentido, as selfies dos jovens numa balada, captando-os inclinados e sorridentes sob as cores das luzes, exibe-os de forma estandardizada, como na infinidade de outras fotos de Instagram ao redor do globo; por outro lado, contrastam com a precariedade das residências mostradas e o espaço de treino de corrida de Jennifer. A bem da verdade, uma contradição não muito longe da realidade brasileira para boa parte da população.

Contrastes como esses são trabalhados em nível visual por Matias, que também assina a direção de fotografia, de forma mais sutil que simples exposição. Se a balada tem cores vivas e variadas, refletidas belamente na pele negra dos personagens, os demais espaços do cotidiano, como a casa de Jennifer e a pista de treino, são cobertos por cores mais sóbrias, desbotadas. A composição também funciona muito bem nesse escopo, captando com excelência as possibilidades de formas e texturas inusitadas em imagens do dia a dia das personagens mesmo quando prefere uma paleta mais restrita. Esta última, aliás, dialoga também com a fotografia do filme-irmão de “La Arrancada”, o curta documentário “El enemigo” (Aldemar Matias, 2015).

Dos diálogos possíveis

Sobre a relação com este último, é pertinente citar que “La Arrancada” funciona de duas formas: a primeira como um filme independente e a segunda como uma extensão de “El enemigo”, no qual já vemos a mãe de Jennifer como um dos personagens. Também este filme retrata algo sobre o “espírito cubano” através de um tema aparentemente irrisório, que é o processo de fumigação das casas para combater dengue e doenças similares. Curiosamente, o tempo menor de duração de “El enemigo” o torna mais ágil que “La Arrancada”, mas não a ponto deste último causar desinteresse no espectador.

Um elemento chave para evitar isso é a presença da figura presente nos dois filmes, Marbelis. Sua personalidade forte e autoritária, demarcada por frases de efeito que colocam filhos e subordinados de trabalho em seus devidos lugares, além da companhia inseparável de seus charutos, contrastam a contento com a introspecção e maleabilidade típica da juventude em Jennifer. É o temperamento de Marbelis que garante o vínculo entre passado e futuro na narrativa familiar, transformando-a em algo que ressoa para além daquele pequeno núcleo de personagens.

Com isso, o caráter majoritariamente observativo dado por Matias ao documentário permite reflexões variadas sobre o tema central do filme e sem um norte ideológico claro. O olhar lançado pelo diretor abre, então, espaço a diálogos possíveis sobre o que significa esse momento político para Cuba, como as novas gerações encaram essa realidade em contraste com a anterior e o que reserva o futuro, diálogos estes que não tem ainda um ponto de chegada definido. Nesse sentido, a cena final de “La Arrancada” é emblemático: os jovens atletas treinam os segundos iniciais da corrida, em busca do melhor desempenho, mas o que os move e motiva fica no silêncio, entrecortado apenas pelo som dos pássaros do parque e dos passos firmes na terra.