Não é segredo pra ninguém que o Studio Ghibli, companhia japonesa de animação fundada por Hayao Miyazaki, está entre as duas ou três maiores do mundo no gênero – se contarmos de, digamos, quinze anos pra cá, só a Pixar conseguiu rivalizar em qualidade e beleza com os filmes da rival nipônica.

Porém, enquanto a empresa americana andou tropeçando nas intenções – filmes como Carros 2 (2011) e Universidade Monstros (2013) são pouco mais que balcões para vender brinquedos –, Miyazaki e cia. legaram ao mundo mais exemplares definitivos da arte de seu país. Seu ex-sócio Isao Takahata, a mente por trás de Cemitério dos Vagalumes (1988) e Only Yesterday (1990), por exemplo, soltou este maravilhoso O Conto da Princesa Kaguya, lançado em 2013, mas que só agora chega ao Brasil.

Pensada inicialmente para formar um programa duplo com Vidas ao Vento (2013), de Miyazaki – numa reprise da estreia histórica de 1988, que trouxe Vagalumes e Meu Amigo Totoro –, a obra acabou tendo a produção atrasada, frustrando os planos dos dois mestres. Mesmo sem esse imprimatur luxuoso, Princesa Kaguya pode facilmente ser considerada a melhor animação daquele ano – ou deste, já que só agora ela aporta entre nós. Unindo uma história icônica da tradição japonesa a um visual deslumbrante, que emula as delicadas gravuras folclóricas do país, o desenho desbanca desde já qualquer candidato ao posto, incluindo o excelente Divertida Mente, da Pixar.

Simples assim. Embora a obra da Pixar alcance as alturas magníficas de um Wall-E (2008) ou Procurando Nemo (2003), a produção de Takahata tem aquele algo a mais indefinível, aquela capacidade de emocionar e se gravar sob a pele que transcende culturas e épocas: a comoção e a universalidade das obras-primas. A trama é simples e profunda ao mesmo tempo: um cortador de bambu encontra uma criança mágica após derrubar um tronco na floresta. A menina, logo apelidada de Pequeno Bambu pelos amiguinhos, cresce de forma anormal sempre que experimenta emoções fortes. Devido à grande beleza, o cortador e sua mulher acreditam que ela está destinada a ser uma princesa, e a levam embora do campo, que Pequeno Bambu adora, para receber uma educação refinada na cidade grande. O choque com os hábitos artificiais impostos às “damas” da úrbis irá provocar a miséria e as desventuras da garota, numa das tramas mais melancólicas já saídas de um filme do Ghibli.

Melancólicas, mas também poéticas: tal como o soberbo Vidas ao Vento, O Conto da Princesa Kaguya é a expressão da sabedoria crepuscular de um grande artista. Takahata, que o próprio Miyazaki define como um mentor, entra aqui na fase final de sua carreira, e, como sói ocorrer aos grandes artistas, esculpe as joias definitivas de seu talento. Se, antes, ele se ocupou das aflições da guerra (Vagalumes), de ecologia (Pom Poko – A Batalha dos Guaxinins) e até das agruras íntimas de uma mulher (Yesterday), aqui ele adentra terrenos menos realistas, extraindo deles testemunhos ao mesmo tempo mais sintéticos e mais abstratos de sua capacidade criadora. Cenas como a do banquete de casamento, a triste ironia dos pretendentes de Bambu ou o último encontro com Sutemaru estão entre as mais emocionantes que o cinema nos deu nos últimos anos.

Toda essa amplitude emocional ecoa também na estética do filme. Com seus cenários esparsos e traços simples, Princesa Kaguya também traduz de forma sublime os conflitos íntimos da protagonista: a superfície modesta, quase infantil, empresta leveza aos momentos mais duros da trama, que não são poucos. Completa o quadro a música de Joe Hisaishi, uma das melhores trilhas do veterano compositor, autor dos temas inesquecíveis de Nausicaä do Vale do Vento (1984) e Totoro.

Eis como um filme de princesa, num traço para crianças, consegue se revelar o ponto mais alto da animação em 2015. Lamentavelmente, o filme perdeu o Oscar desse ano para Operação Big Hero, da Disney. Um bom desenho, decerto, mas incomparavelmente menor do que o maduro e encantador Princesa Kaguya.