Primeiro filme paraense a ser exibido no Festival de Berlim, “O Reflexo do Lago” tateia por diversos caminhos da Amazônia e do documentário ora acertando em cheio pela força das suas imagens ora tropeçando nas próprias pernas pelas pretensões colocadas para si. Nada mais natural para longas de estados ainda em um processo de construção de sua identidade audiovisual e para cineastas realizadas seu primeiro longa-metragem como é o caso aqui de Fernando Segtowick. 

“O Reflexo do Lago” mostra a vida de comunidades ribeirinhas localizadas próximas da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. A obra acompanha a trajetória da equipe marcada por longas distâncias feitas pelos rios da região e por terra, à pé, enquanto conversam com os moradores locais para saber sobre a realidade deles sem energia elétrica sempre observando pequeno detalhes das vidas deles. 

Seria o caminho mais óbvio que Segtowick, experiente produtor paraense com cinco curtas e três séries documentais na carreira, colocasse todo o foco do documentário em registrar o impacto ambiental da hidrelétrica no meio ambiente e na vida daquelas pessoas permeando tudo com depoimentos de pesquisadores, cientistas e sociólogos. Porém, o diretor utiliza “O Reflexo do Lago” para ir além e trabalhar a questão do fazer cinema na Amazônia, um cinema feito por pessoas da região a partir de suas vivências, longe de um olhar doutrinador e exótico.  

Desta forma, a própria equipe surge em cena por diversos momentos se deslocando com os equipamentos no meio da floresta e nos barcos, além aparecer durante a entrevista com os ribeirinhos. A proposta quase metalinguística, porém, soa incompleta, pois, apesar da presença constante de Segtowick, o documentário não abraça totalmente essa vertente sobre filmar a Amazônia, limitando-se mais aos aspectos desafiadores da viagem e das distâncias.  

AMAZÔNIA GIGANTESCA E INTIMISTA

Essa indecisão de não abraçar o debate sobre filmar a Amazônia como foco de “O Reflexo do Lago” deixa o documentário em um caminho incerto. Ora parece ir rumo à vida daqueles ribeirinhos registrando seus cotidianos extraindo a simplicidade singela daquelas pessoas – ouvir relatos como os oito anos de ‘experiência’ de uma senhora antes de casar traz ecos de Guimarães Rosa -, ora adota uma linha política de confronto ao discurso ambientalista do governo federal ao denunciar os crimes ecológicos cometidos para a instalação da hidrelétrica na época da ditatura militar, ora volta ao caráter de metalinguagem. Essas construções quando se mesclam soam, em sua maioria, desconjuntadas com uma tirando a atenção da outra como nas sequências em que Segtowick se intromete em uma conversa de três ribeirinhos para pedir uma entrevista ou na forçada construção da cena em que o jornalista Lúcio Flávio Pinto aparece no documentário.  

Ainda assim, o filme conta com qualidades capazes de deixar qualquer problema em segundo plano, especialmente, nas lentes do diretor de fotografia Thiago Pelaes: poucas vezes, a Amazônia conseguiu nos cinemas ser, ao mesmo tempo, tão gigantesca como intimista. O senso de observação das nuances e dos traços dos rostos dos ribeirinhos ganham contornos solitários, melancólicos e resistentes daquelas pessoas ao abandono sistêmico do Estado e da população brasileira. A montagem de “O Reflexo do Lago” também merece destaque pela forma como respeita o tempo mais dilatado e menos urgente da Amazônia, traduzindo um ritmo contemplativo ainda que não provoque cansaço ao público que assiste ao longa.  

Pelas imagens belíssimas e ser um olhar tão rico, é uma pena que “O Reflexo do Lago” fique no meio do caminho: uma obra com potencialidades claras, mas, sem explorá-las ao máximo. 

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