Nos anos 1970 do século passado, o governo militar brasileiro empreendeu uma campanha ufanista pela Amazônia voltada para grandes projetos ditos progressistas e desenvolvimentistas. Em 1984, foi inaugurada a hidrelétrica de Tucuruí, na região do rio Tocantins no estado do Pará. E eis que 40 anos depois, os moradores do lago e de toda a localidade entorno da hidrelétrica não tem energia em suas casas.

A inquietação perante esse paradoxo – tão marcante e que acaba sendo consequência da maneira que a região Amazônica veio sendo ocupada – levou o cineasta Fernando Segtowick a fazer um documentário para tentar conseguir respostas. Ele mesmo sendo personagem-entrevistador-interlocutor, propõe uma dinâmica de troca com as pessoas das comunidades no lago de Tucuruí. As imagens, em preto e branco, invocam um ar de pesar e urgência ao O Reflexo do Lago, filme que representa o Pará na Berlinale 2020 – vindo a ser apenas o segundo representante da região Norte e da Amazônia em um dos principais festivais de cinema do mundo após “Antes O Tempo não Acabava”, de Sergio Andrade e Fábio Baldo, em 2016.

Fernando Segtowick criou a Marahu Filmes em 2015 com o sócio Thiago Pelaes e desde então vem desenvolvendo conteúdo audiovisual para diferentes plataformas como ficção, documentário ou Branded Content. Nessa entrevista ele aponta os caminhos que o levaram até Berlim, reflete um pouco sobre a carreira e o próprio momento do audiovisual brasileiro.

Cine Set – São vinte anos de carreira e com o primeiro longa-metragem finalizado, uma ótima notícia: estás selecionado para a Berlinale. A sensação é a de dever cumprido ou a de que isso é só o começo? 

Fernando Segtowick – Nos últimos quatro, cinco anos, eu me dediquei totalmente ao audiovisual. Esse investimento e preparação na busca por contar histórias relacionadas à forma com que eu me conecto com elas – e como o mundo pode se conectar com isso também – especialmente, eu sendo um realizador da Amazônia, me trouxeram até aqui. 

Não é só fazer um filme sobre hidrelétrica ou sobre comunidades impactadas; além da preocupação de como contar a história cinematograficamente, a maneira com que me relaciono com as pessoas, o material e a maneira que reverbero isso, além da maneira com que a Amazônia é enxergada pelo Brasil e pelo mundo, é uma das tônicas do “Reflexo do Lago”.  

Nos últimos dois anos, tive a oportunidade de participar com esse projeto de laboratórios como o DocSP e o Roterdã Lab, onde eu pude aprender um pouco mais sobre como lidar com esses temas e preocupações, não sendo apenas um filme guiado pelas questões sociais e ambientais. Sendo que todo esse aprendizado vem no meu primeiro filme de longa-metragem e a sorte que eu tive de tê-lo construído a partir do livro da [fotógrafa] Paula Sampaio [O Lago do Esquecimento] e ter conhecido a historiadora Edilene Portilho, duas mulheres que ajudaram demais no processo. Ainda pude ter na equipe um montador como o Frederico Benevides (“Corpo Elétrico”, de Marcelo Caetano e “Chão”, de Camila Freitas) um cara genial e experiente com quem tive uma troca incrível, capaz de me tirar da zona de conforto e questionar sempre as coisas o tempo todo.  

Apesar de ter feito muitos curtas sido selecionados em festivais aqui no Brasil, agora, está sendo tudo muito novo e, claro, é ótimo estar em Berlim. Porém, acho que a ficha realmente só vai cair quando o filme estiver passando lá mas o que realmente me move é – até pegando aquele clichê de muitos laboratórios, que temos que falar das nossas histórias para o mundo – a possibilidade desse filme tocar as pessoas e falar da nossa região. Isso é o importante. 

Cine Set – Em 2013, tu crias a produtora Marahu Filmes. Reconta um pouco como foi esse processo e o teu encontro com o Thiago Pelaes. 

Fernando Segtowick – Nós nos conhecemos entre 2012 e 2013 ao fazer o curta “Movimento da Fé”. Em 2014, no CINE-PE, quando participamos com esse filme, selamos a nossa parceria profissional e a ideia de ter uma produtora de cinema. Na época, eu estava envolvido com o Núcleo Criativo na TV Norte e, em 2017, foi a vez de termos um núcleo da Marahu. Abrimos a produtora na efervescência da Lei da TV por assinatura e da descentralização dos recursos das políticas públicas para o audiovisual.  

Mas eu e Thiago pensamos realmente em começar com uma operação pequena, que a produtora tivesse uma curva longa e pudéssemos engatar nossos projetos após gestá-los por cerca de cinco anos. Em 2020, além do lançamento do “Reflexo do Lago” em festivais e depois nas salas de cinema com distribuição da ELO Company, nós temos a estreia da série “Sabores da Floresta” com o chef Thiago Castanho, no Futura. Devemos finalizar esse ano um outro documentário, dirigido pelo Thiago, sobre o fotógrafo Luiz Braga que tem um olhar iluminado da região para o mundo. Chama “Filmes de Um Quadro Só“, que está sendo construído a alguns anos com recursos próprios. Será a estreia dele como diretor de longa-metragem também. 

Marahu funciona como uma pequena startup, um braço de um grupo local voltado a diferentes atividades da cultura e do audiovisual. No nosso branding, a Clarté, fica mais com publicidade e uma atuação local, enquanto a Marahu foca em cinema e TV em uma atuação nacional. 

 

Cine Set – Fernando, dirigistes cinco curtas metragens e três séries documentais, dando oportunidade para muita gente que estava iniciando no cinema e inclusive formando mão de obra para a tua própria produtora. Gente como Adrianna Oliveira que já vinha de uma carreira com prêmios por filmes universitários e dirigiu o longa “A Batalha de São Brás”. A Adriana de Faria, que obteve menção honrosa no Festival de Brasília, com “Ari y Yo”, foi outra expoente. Como tu vês essa vocação também para ser um multiplicador na Região Norte, por meio do Marahulab? 

Fernando Segtowick – Sempre foi uma preocupação nossa revelar talentos para o mercado e acho que é legal ter, no “Reflexo do Lago”, por exemplo, tanto a Adrianna Oliveira quanto a Adriana de Faria, além do Lucas Domires, que começou estagiando na produtora e foi assistente de montagem no documentário. Também cito os dois assistentes de direção do “Reflexo”, oriundos do curso de cinema da Universidade Federal do Pará, consequência de algo que a gente sempre fez na Escola Clarté com oficinas de roteiro, direção, fotografia, de formação 

Uma coisa chave hoje é a profissionalização aqui, o que não significa tirar o lado artístico para priorizar o comercial, não é isso. Mas, independente de qual projeto esteja executando, é algo profissional e que faz parte da indústria do audiovisual. Por exemplo, nós vamos apresentar no European Film Market, em Berlim, o “Reflexo do Lago” para possíveis compradores e outros festivais ou mostras interessados. Estamos nos aperfeiçoando como roteiristas – os núcleos ajudam muito nisso – mas também em como formatar, vender nossos projetos, lidar com os players e comercializar. 

Mantendo o nosso foco nessa profissionalização na região, o Marahulab trouxe atividades de capacitação, consultorias, oficinas, masterclass, além de premiações aos participantes. A primeira edição aconteceu no ano passado e, em 2020, faremos em março. 

O evento, aliás, cresce esse ano por conta de uma verba do CTAV – Centro Técnico do Audiovisual – e, por isso, poderemos oferecer cinco formações robustas: o Marcelo Starobinas (“Pico da Neblina” e “Jean Charles”) dará oficina de roteiro de ficção, Eneas Caldas fará roteiro para documentário, o Frederico Benevides ministra duas oficinas (de montagem e finalização) e um curso de produção executiva com Mariana Brasil, Barbara Sturm e Krishna Mahon, além de outras mulheres para falar de tudo, desde legislação até distribuição em vários módulos. Só isso já é coisa pra caramba (risos)!  

Cine Set – O cinema e o audiovisual brasileiros vem sofrendo constantes golpes do Governo Bolsonaro mas parece que ainda há uma luz no final do túnel com o sucesso que os filmes nacionais vem fazendo em festivais internacionais e com a insistência de técnicos da Ancine em manter as coisas funcionando. Como tu vês a atuação da classe na manutenção das políticas públicas, agora ainda tendo que fazer interlocução com a nova secretaria da cultura, Regina Duarte?   

Fernando Segtowick – Importante termos em mente os números das nossas produções e divulgá-los, para que todos possam entender a importância de um audiovisual diverso e como ele gera emprego e renda. Independente de que governo que esteja no poder, as políticas para o setor devem virar políticas de estado e não de uma gestão específica.  

A interlocução que a API – Associação dos Produtores Independentes do Brasil – faz pelo setor é para garantir que essas políticas sejam permanentes. Qual a força que temos quando juntamos todas as nossas potencialidades numa produção? Como “Sabores da Floresta”, série que empregou mais de 30 pessoas, cuja trilha sonora é toda composta por músicos daqui do Pará e apresentada por um chef daqui de Belém, o Thiago Castanho. E quando que um diretor iniciante e da região Norte teria a oportunidade de fazer um longa-metragem?  

Essas perguntas precisam ser feitas. Porque as políticas de incentivo fazem enxergar o mercado de outra forma e democratizam de fato o acesso. O “Reflexo do Lago” foi feito com dinheiro do FSA e Prodecine 5. O setor funciona, sem paralisações, tendo condições de desenvolver os nossos projetos. É isso que queremos como API. 

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