O que motiva um escritor? Como funciona seu processo criativo? Essas e outras perguntas encontram respostas em “Shirley”, drama psicológico dirigido por Josephine Decker e estrelado por Elisabeth Moss. O filme aborda o processo de escrita e questões de gênero. A escrita, no entanto, é a discussão latente enquanto cabe à pauta de gênero estar inserida em cada gesto, diálogo e sequência.
A trama se passa em meados dos anos 1960 e acompanha a autora de contos de suspense Shirley Jackson (Elisabeth Moss) e seu esposo Stanley Hyman (Michael Stuhlbarg), um renomado professor universitário. Os dois recebem em seu lar um jovem casal e, a partir daí, a escritora encontra inspiração para o seu novo projeto. O roteiro de Sarah Gubbins apresenta uma narrativa incômoda: apesar de frisar o bloqueio criativo de Shirley e como isso afeta a sua rotina e a forma como lida com as pessoas ao seu redor, deixa evidente, ainda que nas entrelinhas, o quanto o machismo pode afetar e destruir uma mulher.
“É o gênero que te atrapalha, querida. Não é a sua área”
Shirley nos é apresentada como uma mulher desagradável e egoísta. Seu primeiro encontro com Rose (Odessa Young) causa constrangimento para a admiradora da escritora e logo, em seguida, uma leve rivalidade feminina se instaura. Não é preciso, entretanto, que a trama avance tanto para percebermos que a fonte dos males da protagonista é justamente a pessoa que divide a mesa, a cama e o matrimônio com ela.
No primeiro instante, a forma como Stanley a trata soa como um marido cuidadoso de uma estrela. Não demora muito, porém, para que ele revele o quão manipulador é. Sua fala mansa e seu comportamento gentil tentam esconder a música alta que coloca justamente para enlouquecê-la e a opinião que ele formou para as pessoas a seu respeito. Shirley é uma mulher aprisionada pelo marido na própria casa, enquanto, para a sociedade, é uma pessoa egocêntrica e insana. O relacionamento do casal prejudica sua carreira, tendo em vista que qualquer ideia que ela possa ter, precisa ser aprovada por Stanley.
Dessa forma, pouco a pouco, a direção de Decker vai revelando o que realmente leva as pessoas a se distanciarem do lar do casal e porquê Shirley mal consegue pôr os pés para fora de casa. É neste contexto que o casal formado por Logan Lerman e Odessa Young ganha espaço na narrativa.
Os enganos por trás de uma fala mansa
Assim que são convidados para dividirem o teto com Shirley e o esposo, Rose é otimista, confiante, está entusiasmada com o casamento e a chegada do primeiro filho, o que fica evidente pelo predomínio do amarelo no figurino da personagem. O convite, no entanto, possui armadilhas, que, infelizmente, dialogam bem com a sociedade contemporânea, ainda mais se observarmos os casos de “exposed” que vem surgindo nas redes sociais. Shirley e Rose são vítimas de gaslighting (forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador) de seus esposos.
Por mais que suas narrativas sejam diferentes e o ego deles bata de frente, Fred (Lerman) segue os mesmos passos de Stanley. A gravidez e os cuidados com Shirley são utilizados por ele para que a esposa não saia de casa, enquanto seus horários se tornam mais incertos e os poucos confrontos com Rose o levem a creditá-la como louca. Logo, o casal passa a ser captado com sombras e cores mais escuras nas poucas vezes em que aparecem no mesmo quadro.
A Urgência da Sororidade
Em contrapartida, a fotografia de Sturla Brandth Grøvlen (“Victoria” (2015)) evidencia a união entre as duas mulheres. Por meio de incômodos planos detalhes, há o entrelaçamento de suas jornadas.
Rose e Shirley encontram no processo de escrita um caminho para escapar e vencer a situação em que se encontram. O vínculo formado pela admiração e o gênero (sororidade) é forte o suficiente para quebrar o bloqueio criativo. Mais do que isso: a união feminina é responsável por dar vida ao livro da escritora. Em um diálogo acalorado com o esposo, ela afirma que precisa escrever sobre uma moça – considerada simplória por ele – para dar voz a tantas outras que são sufocadas pela sociedade patriarcal, o que, de certa forma, é a situação retratada em cena.
A direção de Decker acerta em apresentar a violência psicológica nas entrelinhas, já que essa escolha não afeta o público que enxerga no filme um simples processo de escrita. A atuação da premiadíssima Elisabeth Moss (“The Handmaid´s Tale”) também contribui para isso. Ela entrega um trabalho delicado: seus pequenos espasmos e olhares ensandecidos exibem os perigos e os traumas que esse tipo de situação expõe as mulheres, mas não deixa de mostrar, também, como o bloqueio criativo afeta sua forma de lidar com o mundo.
“Shirley” é filme desconfortável porque exibe, na prática, como o machismo pode afetar a vida de mulheres fantásticas. Lembrando com veemência que os traumas e marcas deixados por essa atitude opressora são difíceis de apagar e se refletem em todos os aspectos da vida de quem é submetido a ele. No entanto, o filme nos leva a crer, também, que a sororidade é o melhor caminho para nos libertarmos desse comportamento.