Há quem faça da tecnologia digital aplicada à produção cinematográfica uma apologia inovadora da linguagem do cinema. Criou-se um verdadeiro fascínio pelo resultado que ela oferece nas telas: um hiper-realismo. Sem dúvida, a imagem que é gerada ou produzida por essa tecnologia, esses mecanismos da computação, é capaz de levar a imaginação do espectador ao inimaginável, ao impossível. Com isso, ganha força toda possibilidade de gerar histórias fantásticas, seja no âmbito da pura e simples fantasia, seja na ficção científica próxima do real.

Cena de Arca Russa, filmado em plano-sequênciaSem descartar essa possibilidade, que está cada vez mais aplicada a um fazer cinematográfico de amplo espectro comercial, com uma enxurrada de super-heróis fantasiosos ou personagens humanos com características “sobre-humanas” pululando nos cinemas das cidades, quero acreditar que a tecnologia digital possa estimular a criatividade estética de quem vê no cinema a possibilidade de uma arte.

Com isto desejo falar de um elemento dessa linguagem, existente desde que as primeiras inovações tecnológicas possibilitaram o surgimento da profundidade de campo (enquadramento dos elementos da trama num mesmo plano, com iluminação proporcionando um alto grau de nitidez) e com isto a melhoria da direção de atores no que foi chamado por André Bazin a “essência da ‘mise-en-scène’” (vide Cidadão Kane, de Orson Welles). Estou me referindo ao plano-sequência, uma possibilidade técnica que ganha dimensão estética pela inexistência do corte da ação filmada. Ou seja, toda a ação do filme é registrada numa longa e única tomada.

Antes, quando o filmar estava “limitado” à possibilidade do chassi da filmadora suportar uma quantidade de película, essa aplicação era cuidadosamente aplicada seguindo ditames da lógica cinematográfica aplicada à trama. Quase uma característica estética de cineastas logo lhes atribuída a condição de “autorais”. Hoje, temos como filmar sem necessariamente haver necessidade de dar “stop” à cena, graças a essa tecnologia que pode reter na “memória virtual” longos períodos de gravação, ajustada ao uso do steadicam. Mas continuamos a praticar um cinema que não abre mão do corte, da montagem, da edição, até porque contar uma história no cinema exige mesmo essa estruturação em sua dinâmica.

Michael Keaton em cena de BirdmanEssa possibilidade, contudo, abriu horizontes para ousadias no uso do plano-sequência. Exemplos dessa ousadia com respaldo em valores estéticos ganharam a dimensão de “filmes cult” ou “inovadores”. Seus diretores estão entre os mais respeitáveis: o próprio Welles, Hitchcock, Scorsese, Kubrick, Antonioni, Tarantino. No entanto, o primeiro grande filme inteiramente filmado num plano-sequência foi Arca Russa, de Aleksandr Sokurov, em 2002, o que provocou um “despertar” em outros cineastas e diretores de fotografia. Estes passaram a desempenhar um papel de igual importância ao do cineasta, como é o caso do mexicano Emmanuel Lubezki, em seus trabalhos Filhos da Esperança (2006) e Gravidade (2013) (ambos de Alfonso Cuarón) e Birdman (14) e O Regresso (15) (os dois de Alejandro G. Iñárritu). Temos exemplo inclusive no Brasil, com o filme de Gustavo Spolidoro, Ainda Orangotangos (2007), de 81 minutos.

Quero me deter agora num filme alemão que vi recentemente e que parece estar chamando a atenção por onde é exibido no Brasil. Trata-se de Victoria (2015), de Sebastian Schipper, ou poderíamos dizer de Sturla Brandth, o diretor de fotografia. São 134 minutos de um único plano-sequência, rodado numa madrugada das 4h30 às 7h, nos arredores de Kreuzberg e Mitte, dois bairros centrais de Berlim!

Ainda que a trama do filme não seja algo excepcional (não vou revelar aqui), vemos os personagens principais participando de danças em boate, roubando carros na rua, tomando bebidas em loja de conveniência, drogando-se na cobertura de um prédio, vivendo momentos românticos e praticando o roubo em um banco, com direito a troca de tiros com policiais sem que a câmera pare, sem que haja um corte.

Cena de Victoria, filmado em plano-sequênciaO filme gira em torno da personagem-título e é narrado segundo o seu olhar. Segundo a equipe, foram necessários 12 dias de ensaios em mais de 20 locações. Mais de 150 figurantes atuaram seguindo orientações de seis assistentes de direção. O filme que assistimos é a terceira versão e assim mesmo, de acordo com Schipper, ela ainda contém erros, com momentos de tensão quando a atriz espanhola Laia Costa “deveria ter dirigido o carro após o assalto por um determinado trajeto e errou o caminho. Então o pânico dos outros atores e as súplicas do diretor de fotografia para que ela vire na esquina certa são genuínos e permaneceram no filme, pois seria impossível, naquela altura, paralisar as filmagens para recomeçar”.

É bastante instigante perceber que os limites técnicos podem ser ousadamente vencidos a cada ano, impelindo cineastas a essa corrida. O que não fica assegurado é se será possível conciliar técnica-estética-virtuosismo nesses filmes que virão. O caso de Victoria parece tentar: há um apelo comercial de valorizar o plano-sequência e, ao mesmo tempo, um reconhecimento no Festival de Berlim com o prêmio Urso de Prata de Contribuição Artística. Confiram! Se chegar até os cinemas de Manaus…