As questões relativas à identidade de gênero seguem em alta no cinema brasileiro e são cada vez mais necessárias devido ao crescente fortalecimento do discurso conservador na sociedade. Produções que abordam o processo de transição de personagens transexuais têm ganhado espaço e tornam-se um canal para compreensão da vida de pessoas LGBTQ+. A série amazonense “Transviar” é a mais nova obra sobre o assunto.
Criada por Elen Linth e Riane Nascimento e produzida pela Eparrêi Filmes, “Transviar” acompanha o processo de transição de Pedro (Bernardo de Assis), homem transexual, focando em como o personagem e sua família lidam com a situação. A trama se debruça em contar como cada um dos personagens assimila toda a situação: enquanto a avó Lindalva (Maria Jacob) e o filho Lucas (Levi Kauã) encaram com naturalidade, o irmão machista (Tiago Querino) e a mãe evangélica (Acácia Mié) se mostram resistentes e em estado de negação. Cabe a Miguel (Paulo Queiroz), o esposo de Pedro, ser o personagem que apresenta maior dubiedade nesse processo.
“Transviar” adota um tom sério e detalhista, o que depõe a favor do cenário realista ao qual o projeto se propõe. Parte dessa ambientação se deve, também, à vivência do trio de atores: Assis, Maria do Rio e Thiago Costa.
Excessos de personagens e subtramas
A obra levanta temas contemporâneos pertinentes como a violência doméstica, abandono de lar, movimento sindical, transfobia e a hipocrisia social, entre outros. A abordagem escolhida, no entanto, suscita muitas tramas paralelas, que, em certo momento, ofuscam o enredo principal e marcham para um caminho distante da narrativa de Pedro. Não causaria tanto estranhamento se todas as narrativas se amarrassem no decorrer da temporada, porém, é como se a situação do protagonista fosse um estopim para o drama dos outros personagens. Isso não seria problema, se estivéssemos diante de uma produção com um número maior de episódios.
Com Isso, a montagem é a que mais sofre, pois, precisa ser picotada para finalizar todas as narrativas. Isso não seria necessário se o drama fosse se centralizando conforme os episódios avançassem; a série, porém, segue o caminho oposto e quanto mais perto do fim, mais personagens ganham vozes e novas tramas se estabelecem.
Embora eu concorde que essa escolha expanda e enriqueça as discussões de “Transviar”, ao mesmo tempo, oferece um tom novelesco e quem mais sofre com isso são os personagens, que não possuem adensamento. A trama da família de Anália (Jeinnyliss Paixão), por exemplo , envolvendo violência contra mulher e os traumas deixados por isso, é citada em um dos episódios, mas não se prolonga. Em outros momentos, o roteiro subentende que o público já está a par das situações, mesmo que elas mal tenham sido mencionadas, como é o caso da depressão de Bruno (Thiago Costa).
Todas essas tramas paralelas, se fossem melhor executadas, poderiam elevar o tom da obra e aumentar a empatia e a fatia do público que “Transviar” pode atingir. A questão, no entanto, é que a pouca profundidade das narrativas tornam os personagens caricatos, como o núcleo religioso e o sindicalista. Já Pedro fica deslocado na história em que é o protagonista: o personagem carrega um olhar melancólico e parece estar constantemente incomodado com algo, mesmo quando convive entre aqueles que o aceitam e o enxergam como membro da família. Essa inquietação, porém, não o leva a ação, mas a olhar para o próprio umbigo, o que é criticado por Bruno e naturalizado pelo roteiro.
Sobra silêncio e faltam diálogos
“Transviar” também apresenta um grande vazio em cena, decorrente da ausência de trilha sonora e de diálogos. Tal fato contribui para que muitas cenas percam o impacto que poderiam causar no público leigo, mas, aberto ao diálogo e a conhecer mais esse universo.
Entre esses momentos, um dos que mais perde pela falta de trilha é o do tradicional almoço familiar em que Pedro assume a sua identidade. Enquanto a fotografia em planos fechados consegue transpassar a agonia e angústia do protagonista, a atuação do clã não é suficiente para finalizar a inquietação provocada. Por isso, o maior destaque do episódio, que deveria ser para Pedro, fica para o choro silencioso da mãe comendo sozinha. São essas situações simples que são capazes de gerar identificação e empatia primordiais para produções dramáticas seriadas.
Mesmo assim, é importante perceber o quanto “Transviar” tem a contar e o respeito que a trama assume para com aqueles que representa. Afinal, quantas famílias como a de Pedro, Lucas, Luz, Regina e Sandra podem se identificar com o que vêem em tela?