O Dia da Consciência Negra traz aos cinéfilos a oportunidade ideal para uma reflexão sobre o problema do racismo. Como todas as demais artes, o cinema já produziu reflexões significativas sobre o assunto. Tentativas de dominação, conciliação, massacres, escravidão, “integração” frustrada, emancipação, explosões e latências diversas fazem a mistura das “raças” (entre aspas, por tudo de negativo que o conceito já originou) ferver há séculos. Nossa intenção, aqui, foi fazer uma seleção abrangente, com filmes de sucesso que ajudaram tanto a repudiar como a divulgar a causa do racismo – sim, pois alguns filmes famosíssimos têm uma clara mensagem de ódio racial, e, em alguns casos, conseguiram até mesmo influenciar o público. Confira e fique à vontade para comentar.

a outra história americana edward norton

10. A Outra História Americana (1998)

Numa discussão sobre racismo, este filme talvez seja o exemplo mais didático do mal que ele causa a todos os envolvidos. Com o sempre brilhante Edward Norton, como um carismático skinhead pontificando numa cidadezinha da Califórnia, a obra do diretor Tony Kaye expõe, de forma eficiente e sem maniqueísmo, a combinação explosiva de ignorância e ressentimento que está na raiz de todo preconceito.

a paixão de cristo

9. A Paixão de Cristo (2004)

Eis um exemplo claro do lado errado da questão. A Paixão de Cristo, do (ex?) astro de Hollywood, Mel Gibson, fez uma bilheteria extraordinária (U$ 611 milhões) e é constantemente reprisado na televisão em feriados religiosos. Tudo isso já era de se esperar, dado que é a versão da história de Jesus que mais se aproxima da sensibilidade atual, com efeitos visuais esmerados e doses absurdas de sadismo e violência – praticamente um Jogos Mortais bíblico.

O que realmente diferencia A Paixão de Cristo de outras versões do Evangelho é o seu tom claramente antissemita. Em nenhum momento do filme, os judeus são retratados como pessoas, com suas contradições e dúvidas. Pelo contrário: eles são unânimes em condenar Jesus e exigir a sua punição na carne, da forma mais horrenda possível. Para não deixar dúvidas, o símbolo do demônio do filme só caminha entre os monstros israelitas.

Que este filme seja pra muita gente a “versão definitiva” da história de Cristo só pode ser um fato lamentável do poder que o cinema tem de enganar.

xingu o filme caio blat

8. Xingu (2012)

Questões raciais não são a maior preocupação do filme de Cao Hamburger, mas a fraca recepção a esta obra extraordinária é um dado revelador da dificuldade que o brasileiro tem até hoje com a sua herança indígena.

O descaso com as poucas comunidades existentes, assim como a “integração” desastrosa das tribos com a “civilização” perpassam a história, cuja acolhida apenas reforça a percepção de que esse é um problema ainda longe de ser superado. Um grande filme para se ver e refletir.

quanto vale ou é por quilo?

7. Quanto Vale ou É Por Quilo? (2005)

 O trabalho do diretor brasileiro Sérgio Bianchi traça um paralelo inquietante entre a escravidão do século XVII e a marginalização e paternalismo dos dias de hoje, encarnados nas ONGs. Com um elenco talentoso (Lázaro Ramos, Caio Blat, Leona Cavalli, Milton Gonçalves e Zezé Motta), e uma exposição segura e cheia de convicção dos seus pontos de vista, Quanto Vale ou É Por Quilo? é uma aula sobre as supostas benesses da “consciência social”.

hotel ruanda

6. Hotel Ruanda (2004)

Tanto quanto filmes-tese podem ser benéficos (nosso número 7) – ou desastrosos (nossos 1º e 9º lugares) –, o cinema também tem o poder de recriar episódios que falam por si. É o caso de Hotel Ruanda, do diretor Terry George, que lembra uma das maiores e mais brutais chacinas já perpetradas na história: o assassinato de 800 mil ruandeses da etnia tutsi pela etnia rival, os hutus.

Com diferenças mínimas de “raça”, as duas populações têm séculos de ódio acumulado, que explodiram em 1994, com a morte do ditador Juvenal Habyarimana. Armados de facões e paus, os tutsis eliminaram 20% da população do pequeno país africano, durante 100 dias ignorados pela comunidade internacional.

Observado pelos olhos de Paul Rusesabagina (Don Cheadle, indicado ao Oscar), gerente de um hotel que ajudou a esconder e salvar 1.200 tutsis e se tornou um herói humanitário, o massacre eternizado no filme é tão ilustrativo do ódio racial no passado recente quanto A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, ajudou a iluminar o genocídio nazista para as novas gerações. Imperdível.

crash no limite

5. Crash – No Limite (2004)

Outro filme que mostra a presença do racismo na atualidade. Crash – No Limite, do diretor e roteirista Paul Haggis, cruza os destinos de vários personagens, em situações que confrontam os seus medos e preconceitos. Etnia, posição social, autopreservação – tudo é motivo para entrar em conflito, muitas vezes com violência, no mundo de hoje. Com agudeza e sem julgar explicitamente seus personagens, Haggis faz o espectador rever várias atitudes que julgava corretas.

a fita branca michael haneke

4. A Fita Branca (2009)

O diretor suíço Michael Haneke é talvez o investigador mais certeiro dos impulsos violentos do ser humano. Se em filmes como A Professora de Piano e Violência Gratuita esses impulsos se manifestam (e como!) de maneira física, em Caché e neste A Fita Branca a ação é mais sutil, mas nem um pouco menos contundente.

Com fotografia e direção de arte em planos que lembram grandes pintores europeus, A Fita Branca nos leva a um pequeno vilarejo alemão às vésperas da 1ª Guerra Mundial. Uma série de eventos estranhos (e violentos) se sucede no local, o que leva pais e professores a redobrar a dureza dos castigos, já terríveis, com que as crianças alemãs e austríacas eram educadas no início do século, o que formaria o terreno ideal para a disseminação do nazismo nos anos 1930.

Sem tratar explicitamente de racismo, o filme, no entanto, ajuda a entender como uma tragédia de proporções tão vastas quanto o Holocausto pôde ser levada a cabo. A esse respeito, também vale a pena conferir O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman, que trata do mesmo tema, mas no ambiente urbano da Alemanha dos 20’s.

o pianista adrien brody

3. O Pianista (2002)

Certo, este é o segundo filme sobre nazismo na lista, mas é fato: em nenhum outro momento da história, o racismo produziu resultados tão trágicos. Diferente de A Lista de Schindler, outra obra-prima sobre o tema, O Pianista mostra a escalada do ódio aos judeus pela visão pessoal do pianista polonês Wladyslaw Szpilman.

Carregado das vivências do diretor Roman Polanski, ele próprio um sobrevivente do Holocausto, O Pianista retrata a experiência direta da atrocidade nazista, tragando o espectador para ela. Como relato sobre esse momento terrível, a obra  é insuperável.

malcolm x denzel washington

2. Malcolm X (1992)

No país “civilizado” onde o racismo se tornou política explícita, também surgiram notáveis líderes humanitários, como Martin Luther King e o que dá nome a este filme.

Malcolm X é a biografia do carismático (e brilhante) missionário do Islã, que propunha a emancipação dos negros americanos numa comunidade separada dos brancos, nos anos 1960, antes de ser brutalmente assassinado. É também a obra-prima do mais ruidoso opositor do racismo no cinema, o diretor Spike Lee.

Se, em filmes como Faça a Coisa Certa e A Hora do Show, ele produz obras panfletárias, didáticas, ainda que carregadas de ironia, em Malcolm X ele aposta na dimensão humana e trágica do racismo, o que, somado ao escopo épico e à fluidez narrativa, dignos de grandes mestres americanos (Scorsese, Coppola, Kubrick), mais o melhor desempenho da carreira de Denzel Washington, só poderia dar nisso: um filme essencial sobre a questão racial e uma das obras essenciais do cinema.

Não perca!

o nascimento de uma nação griffith

1. O Nascimento de Uma Nação (1915)

Perto de completar cem anos, esse filme ainda rende muita polêmica.

O Nascimento de Uma Nação, de 1915, foi a obra que inventou a linguagem do cinema, com close-ups, planos gerais e fechados. É também um dos maiores sucessos da história, com uma bilheteria de U$ 50 milhões (em valores do início do século, quando o dólar valia muito mais do que hoje). Mas é, também, e acima de tudo, um dos filmes mais racistas da Sétima Arte.

Com uma história que acompanha, ao longo dos anos, as divergências trágicas de duas famílias americanas, uma do norte e outra do sul escravocrata, o filme defende explicitamente que o sul dos Estados Unidos (e, por extensão, o país) era muito melhor sob o regime escravista, que os negros trouxeram “a semente da discórdia” à América  e a libertação promovida por Lincoln foi um erro grotesco, responsável pela Secessão, a Guerra Civil e, por fim, a ruína americana, da qual os mascarados da Ku Klux Klan emergem como heróis, restauradores da ordem.

O sucesso sem precedentes de O Nascimento de uma Nação causou uma grande controvérsia para o país, saído há poucas décadas da Guerra Civil. Políticas de integração dos negros retrocederam e racistas fanáticos, inspirados pelo filme, ressuscitaram a KKK para novas campanhas de atrocidades. Para aumentar a confusão, Griffith deu a seu filme uma complexidade insuspeita, tal como Shakespeare à sua peça racista O Mercador de Veneza, e afirmou que nunca foi sua intenção fazer uma apologia do racismo.

Em resposta aos detratores, seu filme seguinte é uma obra-prima contra qualquer forma de preconceito – Intolerância, de 1916, e um dos seus trabalhos posteriores traz a primeira relação inter-racial do cinema: Lírios Partidos.

Recentemente, dois filmes de sucesso revisitaram seus temas controversos: Lincoln, de Steven Spielberg, e Django Livre, de Quentin Tarantino, ambos indicados ao Oscar.

Tanto quanto O Nascimento de uma Nação é um filme brilhante e influente, seu conteúdo racista é repulsivo. Só assista se souber separar as duas coisas.