Caro leitor, ao entrar neste território de terror você encontrará os mais diversos spoiler por completo dos filmes. Só leia se já estiver assistido ambos.

 “A morte é onde termina a dor e começam as lembranças” é uma das minhas frases favoritas do best-seller Cemitério de Stephen King e uma das que mais me marcaram na minha formação cinéfila no cinema de horror quando assisti, pela primeira vez, Cemitério Maldito dirigido por Mary Lambert na Sessão da Tarde da Rede Globo nos anos 90. A frase, de certa forma, também cai como uma luva para lembrarmos a dor que sentimos quando Hollywood e seus engravatados gananciosos resolvem fazer remakes (ou refilmagens) porcamente no único intuito de lucrar, deixando de lado a importância de reinterpretarem o material original com certa ousadia e assim, oferecerem uma nova experiência cinematográfica, restando ao público, apenas se agarrar as lembranças e memórias afetivas do original.

Gosto da primeira adaptação de Cemitério, inclusive, na revisão dele feita para a análise deste artigo, relembrei os motivos que me levaram a perder grande parte do meu sono nos dias seguintes após assisti-lo pela primeira vez. Mesmo que conserve boas qualidades (e um bom número de cenas assustadoras) dentro da sua essência de terror, o trabalho de Lambert apresenta certos elementos fílmicos “problemáticos” ou que não envelheceram muito bem com o passar dos anos. Por isso, assim como aconteceu com a minissérie de TV que ficou datada de IT – A Coisa, outro produto do universo de King que ganhou uma versão atual para o cinema em 2017, Cemitério Maldito pelo menos, na teoria, teria uma boa razão artística para ser refeito, afinal o original dá espaço para que melhorias pudessem ser realizadas, no caso, uma refilmagem para apresentar os conceitos existencialistas sobre morte, luto e culpa do livro do escritor para a geração atual.

Depois de anos de conjecturas sobre um remake – inclusive que George Clooney assumiria a direção e interpretaria o médico anti-herói, Louis – finalmente 2019 marcou o lançamento do famigerado produto pelas mãos da dupla Kevin Kölsch e Dennis Windmye. A verdade é que tanto o original quanto o remake oscilam durante o seu desenvolvimento, e o que talvez faça grande diferença no jogo do bicho entre eles, é como cada um, ao afundar nos próprios problemas, consiga emergir com menos terra na boca. Abaixo, citarei os principais pontos, qualidades e defeitos das duas versões.

DUELO I

 As Atmosferas e suas essências em criarem o terror

Aqui, logo de cara, podemos observar que tanto o original quanto a refilmagem partem de propostas diferentes. O filme de 1989 é uma produção mais modesta e seus envolvidos (direção e elenco) com pouca experiência no cinema. Mesmo assim, Lambert acerta ao beber diretamente da fonte do cinema B de horror da década de 80 criando uma atmosfera que combina a cenografia do local – a estrada mortal e a floresta em volta do cemitério – com elementos fantásticos – o cemitério do original é cercado por névoa e luzes neons. Neste quesito, a diretora concilia a doçura e a ingenuidade da época em relação aos dramas e perdas emocionais da trajetória dos personagens com momentos sangrentos e violentos. O tom macabro alinhado a uma dose certeira de sarcasmo ajuda na criação da atmosfera gótica – que eu particularmente acho bem próxima do livro de King – sobre a história da família que foge do estresse da metrópole e encontra o sobrenatural encrustado na vida rural americana.

Por sua vez, o remake investe mais no terror realista e psicológico. Não tem como negar que a dupla Kölsch e Windmye (do ótimo terror Starry Eyes) tem um domínio maior da arte cinematográfica que Lambert, ainda que a diretora mereça o reconhecimento por ser uma das primeiras mulheres a comandarem um filme de horror na década de 80 por um grande estúdio. O novo Cemitério compõe uma atmosfera niilista e creepy, digna dos filmes clássicos de horror sobrenatural com um belo trabalho de iluminação e efeitos nas cenas noturnas. O melhor exemplo disso são os momentos oníricos em que o fantasma de Victor Pascow aparece. Tudo bem que o orçamento do novo filme (aproximadamente 20 milhões) é o triplo do primeiro, contudo você enxerga que os diretores compõem uma atmosfera sólida no horror psicológico.

O VENCEDOR: Pelo esquema tático de jogo proposto pelos dois filmes, o empate em 2×2 é o mais adequado.

DUELO II

ELENCO E PERSONAGENS

Nesta categoria, temos a maior discrepância entre os dois filmes. O novo ganha de lavada em relação ao antigo. As atuações são extremamente sólidas encontrando bem as particularidades de intepretação entre o terror e o drama por parte de seus atores, diferente do trabalho de Lambert que tinha uma dramaticidade caricata no casal vivido por Dale Midkiff e Denise Crosby. O destaque desta nova versão fica por parte das atrizes, Amy Seimetz e da jovem Jeté Laurence (assustadora) como as mulheres da família Creed. O único denominador comum de qualidade na categoria entre o original e o remake é o Jud Crandall que ganha belas performances de John Lithgow na versão atual e do excepcional Fred Gwynne no antigo. Ambos estão excelentes como a bussola moral para as ações de Louis nas duas versões.

O roteiro do atual também acerta na composição da família Creed, aprofundando melhor a dinâmica entre Louis e Rachel em seus dilemas tanto com o passado quanto com o presente, facilitando que os dois ganhem traços de humanidade frente às problemáticas que surgirão mais tarde – algo que na versão antiga faltou, já que o roteiro de King criava simpatia dos Creed muito pela imagem da família feliz do que pelos dramas dos personagens. Sem contar que o gato Church é um  M-A-R-A-V-I-L-H-O personagem sinistro no novo filme, roubando a atenção em algumas cenas. 

O VENCEDOR: 3×0 fácil para a refilmagem em relação ao original

DUELO III

CENAS E TERROR

Por mais que ache a capacidade de Kolsch e Widmyer de gerenciar cenas de suspense e tensão melhor, não vou negar que Lambert no original de 1989 cria momentos de horror puramente cartáticos. A cena de atropelamento é muito melhor filmada, editada e impactante que a do novo filme – que infelizmente, recorre ao cansativo slow motion para acentuar a tensão. O aparecimento de Zelda no original mesmo reduzido gera pelo menos duas cenas de gerar calafrios na espinha e a risada maligna do pequeno Gage continua assustadora. O remake, por mais bem dirigido que seja, falta cenas memoráveis. Nesta categoria, o horror B do original é mais macabro nas imagens que o horror psicológico da releitura. Lambert não é nenhuma diretora exímia nos enquadramentos e composições, ainda assim, nos momentos chaves soube construir boas cenas por meio da atmosfera.

 O VENCEDOR: 2×0 para o original

DUELO IV

ROTEIRO E TEMÁTICAS

O roteiro e a narrativa é onde residem os maiores problemas das duas versões. Eu gosto de como Cemitério 2019 arrisca mais, ainda que isso, não necessariamente indique sinônimo de acerto ou qualidade. Algumas coisas funcionam melhor nele: o fato de tirar toda a subtrama de Missy Dandridge – a empregada doméstica dos Creed – abre mais espaço para o enredo de Rachel e Zelda proporcionando os momentos de maior tensão do longa-metragem. Outro bom acerto foi a diminuição da participação da assombração de Victor Pascow. No original, o fantasma quebrava demais o ritmo do filme pelo alivio cômico desconexo a proposta do texto – ainda que entenda que na década de 80, os fantasmas dos filmes de terror serviam para este intuito – enquanto na nova versão temos uma versão mais ameaçadora e funcional no novo filme.   

Essas escolhas permitem o roteiro de Matt Greenberg tenha um ritmo mais fluído que seu predecessor. A temática da morte do texto de King ganha bons contornos de discussões existenciais na relação do casal – Rachel é a supersticiosa e Louis o realista – conectando as cicatrizes psicológicas de como ambos lidam com as perdas pessoais – dela com a irmã e dele com Victor e Ellie – e é bem interessante a metáfora que o filme utiliza para dizer que muito mais que os corpos que são trazidos de volta à vida no cemitério dos bichos, são nossos “demônios pessoais” (medos) que retornam a vida como forma de encararmos nossos próprios medos e de lidar com o retorno do que foi reprimido.  Infelizmente, o remake nunca faz bom uso dos novos elementos que não existiam no original. As crianças mascaradas – uma bela referência ao clássico inglês Homem de Palha – e o mito do Wendigo (que servia para explicar o cemitério dos bichos no livro de King) são muito mal exploradas pelo roteiro.

 Neste aspecto, o original por mais que não ouse, sabe oferecer um filé com fritas satisfatório. Mesmo oscilando no ritmo e com situações que não envelheceram bem, Cemitério 1989 continua forte em como trata a obsessão pela morte e de que maneira a natureza humana (o solo do coração de um homem é mais duro, como Jud diz para Louis) é puro reflexo de traumas e questões não resolvidas que existem entre nós. É fácil você perceber que muitos enxergam o filme de Lambert como um clássico de terror sem precedentes. Eu pelo menos não concordo com este ponto de vista, mas respeito à opinião principalmente por reconhecer que o filme de 1989 materializou com eficiência em imagens, os momentos macabros existentes nas páginas do livro do escritor. É uma obra que aborda com requintes de perfeição a crueldade da natureza humana frente à perda e o luto.

 O VENCEDOR: 2×1 para o original, que administra o resultado com desenvoltura

DUELO V

O ATO FINAL

A morte de Ellie e não de Cage na nova versão foi uma das coisas que mais me agradaram quando o primeiro trailer saiu. Um dos meus maiores problemas com o original é o seu último ato: ainda que assustador pela violência – a morte de Jud é grotesca – dificilmente você “engole” uma criança como Cage realizando aquela matança, principalmente por ser perceptível que é um boneco no lugar do ator Mike Hughes. Logo, o fato de ser Ellie quem retorna do mundo dos mortos é uma ideia interessantíssima, porém pessimamente executada. 

O ato final do novo Cemitério é problemático até dizer chega. Ele desmorona, por completo, toda a construção elegante do seu horror psicológico realizado até então. O elo afetivo e relação emocional entre Ellie e Louis conduzida com exatidão pelas alegorias e simbolismos do texto, dá espaço a um entretenimento raso e sem compromisso que enche o público de jump scares, furos de roteiro e um ato final que mistura elementos genéricos de filmes de possessões, exorcismos, J-Horror e Brinquedo Assassino para oferecer um final bizarro, que destoa por completo do restante do filme. Fica a impressão de um ato final Frankenstein, inserido de última hora como uma piada de mau gosto. Uma pena, porque é neste exato momento que o filme ousa e segue por um caminho totalmente diferente do original e do livro.  Será difícil você encontrar nos últimos anos, um filme que se sabota por completo como é o caso de Cemitério 2019.

 O VENCEDOR: 4×0 para o original, com dois gols contra do adversário

* texto original alterado para substituir a equivocada expressão racista humor negro.