O Festival de Cannes 2013 foi histórico. Quem conseguiu prestar atenção em outra coisa além da Palma de Ouro concedida a Azul É a Cor Mais Quente (que premiou, num gesto sem precedentes, o diretor bem como suas duas atrizes principais), pôde notar que a mostra paralela Quinzena dos Realizadores também marcou o retorno do diretor/roteirista/mago Alejandro Jodorowsky às telonas, com seu primeiro longa em 23 anos.

O acaso entrou em jogo quando Duna de Jodorowsky também foi selecionado para ser exibido na Quinzena, o que criou uma espécie de dois-em-um de Jodo (apelido carinhoso do diretor), imbuindo o Croisette da melhor aura das sessões de meia-noite dos cinemas centrais das cidades brasileiras (cada vez mais escassos). Esse mesmo acaso aparece várias vezes no filme, em que o diretor relata encontros totalmente improváveis com figuras lendárias como o desenhista francês Jean Giraud (que assinava seus trabalhos em HQs como Moebius) e o pintor surrealista espanhol Salvador Dalí.

Para quem pegou o bonde agora, vamos começar com uma proposta: Duna de Jodorowsky é uma falácia, ele não existiu. De fato, ele nunca existiu e figura, junto com Napoleão, de Stanley Kubrick, na lista de maiores filmes nunca feitos. O documentário, dirigido por Frank Pavich, entrevista os criadores dessa magnum opus, uma adaptação muito livre do livro Duna, de Frank Herbert, que nunca aconteceu e remonta pedaços de roteiro e storyboard numa busca pelo intangível o-que-poderia-ter-sido.

Agora, uma contraproposta: como dizer que Duna de Jodorowsky não existe? O documentário de Pavich tem um ponto (muito bem colocado, por sinal) de que a influência do filme atravessa décadas e permeia o DNA de toda a ficção científica feita desde então. As entrevistas com quem concebeu Duna são quase um quem-é-quem do gênero: o diretor de efeitos especiais Dan O’Bannon, que trabalhou com John Carpenter, Ridley Scott e Tobe Hooper; o pintor H.R. Giger, famoso pelas pinturas grotescas que misturam biologia e maquinaria; o ilustrador Chris Foss, que chegou a trabalhar com Kubrick e assinou o design de espaçonaves do recente Guardiões da Galáxia (2014); e o próprio Moebius, provavelmente o maior expoente da bande dessiné desde Hergé.

O filme não é exatamente sutil ao elaborar essa tese, mostrando, com deixas visuais e edições convenientes, como elementos do design do Duna de Jodorowsky foram parar em filmes como Flash Gordon (1980), Blade Runner (1982) e Prometheus (2012). Porém, com sutileza ou não, as semelhanças são inegáveis. Em particular, o mesmo time que elenquei acima (O’Bannon, Giger, Foss e Moebius) se juntou para fazer Alien – O Oitavo Passageiro (1979), filme pelo qual ganharam o Oscar de Efeitos Visuais, o que Jodo menciona com certo ressentimento.

Falando nele, não é à toa que o nome dele está no título do documentário. O diretor chileno transborda vida, paixão e total dedicação à arte. É decididamente um choque para a geração “millenial”, que está doida para encontrar um “mercado de nicho” e está preocupada com “branding”, ouvir um senhor de mais de 80 anos falar, com vigor, sobre como enfrentou os sindicatos mexicanos para fazer Fando e Lis (1967), seu filme de estreia, e como ele, no fundo, não se arrepende de ter imposto as condições que os estúdios não aceitaram e que culminaram no fim do seu projeto de filmar Duna. “O filme tem que ser como você sonhou!”, exclama, em determinado momento.

Sua percepção ao mesmo tempo humana e sobre-humana sobre a vida é quase hipnótica: ao descrever seu filme não realizado, ele mistura sonho e realidade de tal forma que nos é impossível separar o que existiu e o que não existiu (seu novo filme não se chama A Dança da Realidade à toa); por outro lado, ele é sincero ao falar do prazer de ver a versão que David Lynch fez do livro de Frank Herbert. “Fui ao cinema e, aos poucos, fui me alegrando porque o filme era horrível!”, diz, entre risadas. Quem não reagiria da mesma forma ao ver o seu sonho não realizado virando uma batata quente nas mãos de outra pessoa?

Todos esses momentos enchem Duna de Jodorowsky de uma certa magia e provam que o filme perdido existiu, afinal de contas, e continua a existir, na forma de um constructo coletivo que inspira até hoje. Pavich entrega um documentário clean, mas que não abre mão de mostrar empatia por seu objeto de estudo, e pinta um retrato muito satisfatório sobre essa obra-prima do faz de conta. Sua vez, Napoleão de Kubrick.