Quem já fez cursinho pré-vestibular ou preparatório, com certeza lembra das aulas de macetes para você memorizar os conteúdos com maior facilidade. Sem contar o famoso “aulão de revisão”, geralmente oferecido na véspera da prova, com o intuito de você assimilar com maior facilidade, os assuntos importantes. No cinema, as biografias de grandes personalidades muitas vezes funcionam neste sentido. Servem para agradar tanto o público que conhece os detalhes da história do sujeito, como também o público leigo que jamais ouviu falar delas.

Escobar: A Traição, a mais nova produção cinematográfica a tratar do ícone do narcotráfico Pablo Escobar, encaixa bem nesta prerrogativa: É o resumo do resumo das duas temporadas da série Narcos da Netflix, centradas no perigoso traficante. Se você não estiver com tempo ou paciência para assistir os 20 episódios com duração de aproximadamente 1 hora da série, a ida ao cinema para ver as duas horas de A Traição se torna uma escolha viável e sedutora, um resumo maroto para te colocar a par da trajetória do líder do cartel de drogas colombiano.

O longa é baseado no livro ‘Amando Pablo, Odiando Escobar’, da jornalista Virginia Valejo (na película vivida por Penélope Cruz), que manteve um relacionamento adúltero com o traficante (interpretado pelo ótimo Javier Bardem) entre o período de 1981 a 1993. É focado no ponto de vista da jornalista, retratando o impacto que a relação trouxe para a sua vida pessoal e profissional, além das principais atrocidades cometidas por Escobar que fomentaram um enorme caos e terror na Colômbia neste período.

O diretor espanhol Fernando León de Aranoa realmente mostra que está em um ambiente cinematográfico que domina. Assim como suas obras anteriores, Segunda-feira ao Sol (2002) e Princesas (2005), o diretor explora figuras marginalizadas frente a contextos sociais, sempre emprestando um toque real que transita pela dimensionalidade humana dos protagonistas, sem glamouriza ou idealizá-las. Em A Traição, León tem o mérito de sair da exploração audiovisual já saturada do mito da figura de Escobar para se focar numa lacuna mais real dele, longe do herói idealizado por Wagner Moura em Narcos. Vemos um Pablo ambíguo, que é doce e afetivo com a família, Virginia, amigos e cúmplices como também um homem destituído de charme, que revela um caráter perverso com as mesmas pessoas, à medida que seus desejos sofrem restrições.

O roteiro escrito pelo próprio diretor é eficiente em mostrar o traficante em situações decadentes – principalmente na segunda parte do filme – quando desconstrói o mito de Escobar na espetacular cena em que ele se sente humilhado por não levar a filha para tomar sorvete, pois precisa antes, sair da sua luxuosa prisão particular que ele mesmo construiu. É instigante como o filme nestes arcos narrativo, faz um belo retrato intimo humano dos seus personagens, sem vitimá-los ou endeusá-los, apenas os tornando reais pela sua vulnerabilidade, com a figura do mito dando espaço a imagem do homem.

Infelizmente, isso não esconde uma série de problemas de conduções narrativas do longa que diminuem a intensidade da sua história. A maior delas é o ponto de vista centrado na figura de Virginia. Por ser o fio condutor da história – afinal ela é baseada no livro da jornalista – o roteiro de Fernando praticamente esquece esta perspectiva, deixando de explorar a relação amorosa entre ela e Pablo, sem aprofundar os seus sentimentos frente as várias problemáticas que enfrenta durante a trama. A impressão é que quase todo o filme valoriza a ótica de Escobar frente aos acontecimentos, do que ligá-lo a visão de Virginia. Em outras palavras, a própria protagonista da narrativa é deixada de escanteio e o filme perde um olhar distinto, no caso feminino, que traria elementos inovadores e pertinentes em um mundo masculino violento, afinal a maioria das obras centradas na figura do traficante são sempre marcadas por visões masculinas do mundo da lei.

Outra problemática é falta de foco. Ao se centrar nas duas décadas da vida de Escobar, o filme não tem tempo suficiente para aprofundar eventos relevantes como a bomba que derrubou o Boeing 727 da Avianca e a fuga do traficante da cadeia. Há uma relativa falta de impacto dramático em construir estas situações, inclusive isso reflete em vários personagens secundários que não criam vínculos com o público. Quando Pablo resolve eliminar seus dois principais sócios dentro do cartel, a cena que deveria ser tensa e violenta, não obtém o impacto emocional no espectador pelo fato dos dois personagens, até aquele momento, não terem mostrado qualquer relevância para a narrativa.

Nota-se que administrar toda a vida do traficante em apenas duas horas, deixa a trama saturada, com mais informações que a narrativa permite, sem contar a repetição burocrática da já esgotada história de Escobar. Inclusive o filme comete um dos erros da série Narcos, ao utilizar a narração em off com excesso o que tira a espontaneidade do longa. É claro que Escobar: A Traição tem situações narrativas interessantes como na sequência que o traficante presenteia sua amante com uma arma e descreve de modo bárbaro, o que seus rivais fariam com ela para se vingar dele. É um diálogo assustador que coloca o espectador em estado de pura tensão, apenas através do tom sinistro que Bardem empresta ao personagem.

Estes escorregões narrativos, pelo menos, não são sentidos na direção sólida de Aranoa. Temos uma total estilização nos planos, enquadramentos e montagens que seguem à risca, a técnica scorsesiana com direito a um belíssimo plano-sequência da fuga de Pablo na floresta contra forças oficiais e seus helicópteros e um travelling digno de um suspense hitchcockiano na derradeira cena final do filme, são momentos de grandes picos de tensão. É claro que a competência de ter Bardem e Cruz no elenco é outro fator capital para funcionalidade da obra.

Bardem é hábil na performance entre o intenso, o exagerado e o cativante. Seu Pablo é realmente diferente do interpretado por Moura na série, até porque o ator espanhol aposta em explorar os contrastes do caráter socialmente desconexo de Escobar e isso fica evidente nas ações contraditórias do traficante com seus inimigos (a violência) e nos atos (humanos) com seus familiares. Penélope sofre mais, por ter em mãos, uma personagem que não é muito bem desenvolvida pelo texto. Contudo, todas suas cenas com Bardem, seu esposo na vida real, são oportunidades para a atriz torná-la palpável e carismática. Infelizmente os ótimos coadjuvantes Peter Saarsgard e Julieth Restrepo brilham em cenas pontuais até porque o roteiro não sabe muito bem o que fazer com seus personagens, ainda que o ator se beneficie do seu agente americano ganhar maior relevância na metade e final do filme.

Escobar: A Traição não chega a ser o grande filme que se espera de Pablo Escobar. Para os leigos é um bom resumão executivo que provoca desconforto e reflexão. Aos que se interessam pelo personagem, a produção não foge da sua obviedade e repete diversas situações já mostradas na série da Netflix, inclusive ficando bem atrás dela em relação ao aprofundamento sobre as ações do traficante. É uma pena que a premissa diferencial do longa de focar no relacionamento abusivo entre Virginia e Escobar não se concretize e o filme de Fernando seja o milésimo primeiro a retratar Pablo da mesma forma. É realmente uma produção tecnicamente grandiosa, bem dirigida e atuada, mas que no fundo é repetitiva e que pouco se distingue do que já foi visto no cinema e na televisão. De fato, se você tiver que fazer um teste sobre Pablo Escobar, A Traição vai permitir o espectador cinéfilo encher uma boa linguiça durante o exame.