Único longa brasileiro presente nas seleções do Festival de Cannes, “Gabriel e a Montanha” propõe uma viagem ao coração da África mas também passeia por temas que estão muito mais próximos do Brasil do que a superfície deixa entrever. No centro de ambas as jornadas, está Gabriel Buchmann (João Pedro Zappa), brasileiro que se lança num mochilão pelo mochilão e cujos últimos meses de vida são remontados aqui pelo diretor Fellipe Barbosa, que contou com diários, cartas e fotos da viagem para escrever o longa – uma homenagem ao jovem, seu amigo na vida real, morto em 2009 ao final de sua expedição.

Em entrevista ao Cine Set, Fellipe comentou a obsessão por filmar nos mesmo lugares que Gabriel esteve, inclusive no local ermo onde seu corpo foi encontrado, e isso é notório no filme. A multiplicidade de locações é admirável e pinta um retrato vívido do sudeste africano. O filme tem um formato road trip, com uma leve narração e com o encontro com personagens pitorescos que, depois aprendemos, são os mesmos encontrados pelo Gabriel real.

Uma de suas características mais interessantes é um desejo ardente por viver como um local por onde quer que passe. O que começa como sendo uma excentricidade de um viajante hippongo começa a ganhar contornos mais sério conforme ele vai sendo confrontado com realidades nas quais não consegue se inserir e se tornando cada vez mais frustrado. A mais óbvia delas é a cor: Gabriel é, durante boa parte de sua jornada, o único branco nas redondezas e, ainda que argumente que sua raiz brasileira pressuponha uma mistura de raças, os locais, por mais simpáticos que sejam, o lembram da sua diferença. Sua negação a fatos como esse transparecem uma fuga de algo que, a princípio, não conhecemos.

Detalhes como esse têm novos significados com a chegada da namorada de Gabriel, Cristina (Caroline Abras), no meio do filme, que altera o seu tom. Em termos narrativos, a personagem dá ao jovem um passado, inserindo vários outros temas interessantes no projeto. Questões como a posição socioeconômica do personagem, seus princípios ideológicos e os motivos de sua viagem, aparecem nos fundos da narrativa e se tornam um dos maiores motes do filme.

A conversa entre Gabriel e Cristina que muda o foco do filme traz em dez minutos exposições que poderiam ter sido mais diluídas, tornando a mudança um tanto abrupta. Além disso, a relação dos dois também é mostrada de uma maneira demasiado juvenil para suas idades (eles estavam próximos dos 30 na época da viagem), no entanto, o filme nos dá o suficiente para comprarmos a experiência compartilhada dessas personagens.

Todo o passado que a brasileira leva na mala até a África acaba se tornando um dos pontos mais interessantes de “Gabriel e a Montanha”, alinhando este trabalho sensível à crítica social mais dura de “Casa Grande”, trabalho anterior do diretor. É possível ver a contradição que a formação social e a classe do jovem apresenta ao seu pensamento humanista sempre preparado para abraçar o novo e as diferenças, que acaba, mesmo no coração da África falando muito sobre o Brasil atual e como as políticas do dia-a-dia refletem na vida dos brasileiros.

Como estudo de personagem, “Gabriel e a Montanha” é um retrato de um jovem peculiar cuja morte acompanhamos, de certa forma, em câmera lenta, mas cuja vida provê um microcosmos sobre uma nação dividida em busca de paz interna e em busca de se reencontrar.