Antes de chegar propriamente aos filmes realizados no Amazonas no período compreendido entre as décadas de 1960 e 1990, precisamos abordar uma série de iniciativas relacionadas ao cinema que surgiram no Estado nesse período, particularmente na cidade de Manaus, e que foram fundamentais para se criar um ambiente propício para o que viria em seguida, concretizado na conquista de espaço para a crítica cinematográfica, na realização de curtas-metragens e na promoção de festivais de cinema. Podemos dizer que a cidade viveu um período de efervescência cultural em torno do cinema, com o surgimento de uma geração que se destacaria na cena artística, cultural e intelectual do Amazonas dali em diante.

Conforme vimos em textos anteriores, com o retorno de Cosme Alves Netto a Manaus, em 1962, uma série de ações relacionadas ao cinema aconteceram na cidade. Inicialmente houve o curso de cinema associado à Escola de Artes Cênicas e Musicais do Amazonas, esta uma iniciativa do maestro Nivaldo Santiago, que ministrava os cursos em salas do Teatro Amazonas. O curso de cinema era ministrado por Cosme, que lecionava história do cinema e técnica cinematográfica, e por Luís Ruas, que ministrava estética cinematográfica. Posteriormente, foi fundado o GEC – Grupo de Estudos Cinematográficos do Amazonas, que em sua origem contava com Cosme Alves Netto, Ivens Lima, Joaquim Marinho, José Gaspar, Randolfo Bittencourt, Luiz Ruas, Guanabara de Araújo, Silene Caminha, Freida Bittencourt e Márcio Souza.

Graças à atuação de Cosme, o GEC estava articulado com diversas embaixadas estrangeiras, com o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e com a Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Essa rede de colaboração permitiu que o GEC tivesse uma programação sofisticada, exibindo desde clássicos do cinema norte-americano até o moderno cinema europeu que surgia naquele exato momento. Conforme lembra Márcio Souza em seu livro A substância das sombras: (2010, p.215) “O GEC foi o meu Cinema Paradiso, onde apreciei pela primiera vez a sequência da escadaria de Odessa, do Potemkin; a navalha no olho, de ‘Un chien Andalou’; a busca noturna no pântano de ‘Aurora’; o travelling vertiginoso da primeira cena de ‘A Turba’; a dança da galinha azul de MacLaren – tantas cenas na escuridão: Wiene, Lang, Capra, Wilder, De Sica, Felinni, Visconti, Antonioni, Ray, Misogushi, Ozu, Ishikawa, Kurosawa, Kobayashi, Renoir, Clair, Autant-Lara, Vigo, Guitry, Carné, Lean, Hitchcock, Chaplin e Buñuel.”

Articulação nacional do GEC permitiu a chegada de obras-primas do cinema a Manaus

As sessões ocorriam no Palácio dos Rodoviários, prédio onde hoje funciona o curso de medicina da UEA. As sessões foram se tornando cada vez mais populares e era frequente que o auditório, que comportava cerca de 300 pessoas, ficasse lotado. Não eram raros os eventos onde as discussões sobre os filmes despertavam paixões, como lembrou Ivens Lima, em entrevista publicada no livro “No rastro de Silvino Santos”, de Selda Vale e Narciso Lobo, quando relatou os embates ocorridos em uma sessão dedicada a Charles Chaplin devido ao folheto de apresentação distribuído na entrada (escrito por Lima) enfatizar a importância de Max Linder – ator francês do período do cinema silencioso – para a existência de Chaplin, argumento que gerou discórdia entre os participantes.

Para além da cinefilia, do interesse e paixão pelos filmes, desse movimento cineclubista egressaram críticos de cinema e cineastas. Por iniciativa de José Gaspar, surgiu a revista Cinéfilo – revista amazonense de cinematografia, que reunia críticas de boa parte dos membros do GEC. A revista teve quatro edições publicadas e foi interrompida devido a perseguição do governo militar.


Edição nº 02 da revista Cinéfilo, Agosto de 1968

Cosme ficou à frente do GEC até 1964, quando retorna para o Rio de Janeiro. Após o período em que ocupou o auditório do Palácio dos Rodoviários, o GEC mudou-se para o SESC, provisoriamente, e posteriormente para o auditório Alberto Rangel, no segundo andar da Biblioteca Pública, de onde continuou com suas atividades até aproximadamente 1966.

Na segunda metada da década de 1960 surgiram outros cineclubes na cidade de Manaus, como o cineclube que funcionava no SESC, promovido por Roberto Kahané e Felipe Lindoso, que inicialmente frequentavam o GEC, mas que haviam saído para seguir com outros interesses e outros tipos de filmes nessa nova iniciativa. O GEC, entretanto, foi o mais importante deles e a base a partir da qual seus membros passaram a frequentar eventos fora do Estado. Em 1962, Ivens Lima participou da III Jornada Nacional de Cineclubes, ocorrida em Porto Alegre, representando o GEC. Em 1965, Joaquim Marinho e Márcio Souza participaram da V Jornada, ocorrida em Salvador, para onde levaram o curta-metragem Rapsódia incoerente, dirigido por Márcio Souza e inspirado pelas experimentações de Norman MacLaren.  Em 1967, Márcio Souza participou da VI Jornada Nacional de Cineclubes, na cidade de Fortaleza. Dessas viagens se estabeleceram contatos com outros cineclubistas e cineastas que estavam vivendo experiências semelhantes em seus Estados. Da viagem à Bahia, por exemplo, resultaram contatos com Walter da Silveira e com Paulo Gil Soares, importantes nomes ligados ao cinema baiano que surgia naquele momento.

Entre as articulações desse período, está a da vinda de Glauber Rocha para Manaus no ano de 1965, para filmar o curta-metragem “Amazonas Amazonas”, por encomenda do Departamento de Propaganda e Turismo – DEPRO, do governo do estado, dirigido por Luis Maximino de Miranda Correia. Este curta está situado entre “Deus e o Diabo na terra do sol”, de 1964, e “Terra em transe”, de 1968, dois dos mais importantes filmes do cineasta e foi a primeira experiência de Glauber com filmagem a cores.


José Gaspar entrevista Glauber Rocha para o jornal A Crítica, em 1965

Ao final da década de 1960, o aumento da perseguição e da repressão por parte dos agentes da ditadura militar causa certos problemas em relação a determinados filmes exibidos no cineclube. Além disso, alguns dos seus principais membros estavam ocupados com outras atividades ou vivendo fora de Manaus, como Márcio Souza, que estava em São Paulo estudando Ciências Sociais na USP. Desse modo, as atividades do cineclube vão diminuindo de frequência.

GEC criou uma cultura cinematográfica na cidade de Manaus

O GEC foi um cineclube que reuniu uma geração de jovens cinéfilos amazonenses, muito inspirado no movimento ocorrido na França na década anterior, que naquele país resultou na Nouvelle Vague e no surgimento de uma nova geração de críticos cinematográficos que escreviam para revistas como a Cahiers du cinema e a Positif. Guardadas às devidas proporções, tal como na França na década de 1950, o GEC criou uma cultura cinematográfica na cidade de Manaus, fomentando a cinefilia por meio de sessões de filmes comentadas em cineclubes. Nesse período, os cineclubes funcionavam como uma espécie de universidade informal, sintonizando os participantes com os principais debates políticos e estéticos de seu tempo. Em uma cidade como Manaus, ainda provinciana e às vésperas da implantação de seu pólo industrial, essa experiência foi fundamental na formação de uma consciência crítica em seus jovens frequentadores, que teria consequências positivas nas agitações culturais das décadas seguintes no Estado do Amazonas.