A pesquisa sobre a filmografia amazonense, que atualmente coordeno[1], tem como principal objeto de pesquisa os filmes realizados no Amazonas por cineastas locais no período compreendido entre as décadas de 1960 e 1990. Que filmes são esses? Como foram produzidos? Quais profissionais estiveram envolvidos? Por onde os filmes circularam? Estas são algumas das questões que nos colocamos e que consideramos importantes para nos ajudar a desenhar um quadro da história do cinema no Amazonas. A partir dos filmes pretendemos esboçar como se constituiu historicamente a atividade cinematográfica no Estado, de modo a entender seus rumos desde então.

Além dos temas pertinentes à realidade local propriamente, podemos situar esta pesquisa também em relação com o cenário nacional da pesquisa relativa ao cinema brasileiro, uma vez que tratamos da produção de um estado específico, ainda pouco abordada e pouco conhecida, algo que deve oferecer uma contribuição interessante para um panorama nacional da história do cinema brasileiro e de suas realidades regionais, historicamente negligenciadas nos estudos de cinema no país. Como o cinema amazonense se relacionou com a produção central brasileira nesse período? Os cineastas locais circularam por eventos fora do estado? Houve arranjos produtivos em colaboração com outras realidades regionais? Houve intercâmbio com profissionais de fora do estado? Questões como estas podem nos ajudar a entender como tem se constituído uma cadeia produtiva de cinema no Brasil e compreender como historicamente se mantém as assimetras regionais em termos de produção cinematográfica.

Apesar do nosso interesse maior associado aos filmes, sabemos que o cinema é uma atividade coletiva e que estes resultam de esforços articulados em uma sequência de atividades coordenadas entre si que dependem de uma série de fatores externos aos da produção de cinema especificamente. Tal fato nos leva a ao encontro de nomes que foram fundamentais para o desenvolvimento do cinema no Amazonas e que vão além da realização de filmes. Quando aproximamos os dois pontos apresentados acima, ou seja, quando, por um lado, nos debruçamos sobre a história do cinema no Amazonas e, por outro, sobre a relação do contexto local com o cenário nacional, um nome central aparece: Cosme Alves Netto.

Cosme Alves Netto foi um dos mais importantes agitadores culturais do cinema brasileiro

Cosme foi uma figura muito importante no cenário do cinema moderno brasileiro que se desenvolveu na década de 1960. Como não atuou diretamente na produção de filmes, manteve-se um nome relativamente desconhecido do público consumidor de cinema, ao passo em que era figura muito conhecida entre os cinéfilos frequentadores de cineclubes e dos jovens cineastas brasileiros. Do mesmo modo, como não dedicava-se a pesquisar e escrever sobre cinema, sua figura permaneceu um pouco à margem nos estudos acadêmicos relativos ao cinema brasileiro, ainda que tenha sido um importante agitador cultural do período de eclosão do cinema moderno brasileiro e um importante divulgador do cinema nacional e latino-americano.

Amazonense, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1946, acompanhando o pai, Cosme Ferreira, deputado federal constituinte pelo Amazonas. Na então capital federal ele desenvolve seus estudos e envolve-se fortemente com o movimento cineclubista, que nos anos 1950 e 1960 concentrava-se em dois grandes pólos aglutinadores: o Grupo de Estudos Cinematográficos da União Metropolitana dos Estudantes (GEC-UME), do qual Cosme foi diretor de 1959 a 1962, e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM.


Cosme Alves Netto e colaboradores da cinemateca do MAM-RJ

Cosme era um cinéfilo. O interesse em garantir a existência de cópias para que se pudesse exibi-las levou essa sua paixão pessoal para além da fruição, despertando seu ímpeto preservacionista. Nos anos em que esteve à frente do GEC-UME Cosme burilou sua vocação em difundir o cinema que tanto o emocionava, sobretudo o cinema internacional. Daí desenvolveu seu interesse pela conservação e restauração de filmes e iniciou uma ampla rede de colaboração internacional envolvendo cinematecas e embaixadas ao redor do mundo.

Em 1962, Cosme retorna a Manaus a pedido do pai, que desejava que o filho assumisse os negócios da família. Entretanto, desinteressado pelas atividades empresariais e marcado por sua experiência recente como agitador cultural no circuito cineclubista do Rio de Janeiro, ele vai se mobilizar para fomentar atividades ligadas ao cinema na cidade. Inicialmente ele procura Ivens Lima, que tinha um programa de rádio sobre cinema intitulado “Cinemascope no ar”, veiculado semanalmente na Rádio Rio Mar. A proposta era a de promover um curso de cinema em Manaus, a fim de reunir possíveis interessados em cinema. Cosme seria o professor de história e técnica cinematográficas e o padre Luís Ruas seria o professor de estética cinematográfica. Entre os jovens que se inscrevem no curso estão Márcio Souza e Guanabara de Araújo.  Esse seria o germe do Grupo de Estudos Cinematográficos – GEC, em sua versão amazonense, que mais tarde reuniria outros nomes importantes para o cinema no Amazonas, como o do produtor cultural Joaquim Marinho e o do crítico José Gaspar.

Cineclubismo incentivado por Cosme no RJ e em Manaus formou diversos profissionais do cinema

Em 1964 Cosme retorna ao Rio de Janeiro. Com o golpe militar, ele acaba preso, permanecendo enclausurado por seis meses. Após a libertação assume a curadoria da cinemateca do MAM-RJ, onde permaneceria até 1988, posição na qual se notabilizou como o grande divulgador e preservador do cinema brasileiro e latino-americano. Assim, ele tornou-se personagem importante em uma cultura cinematográfica pungente que se formava na cidade do Rio de Janeiro, com ações de exibição, discussão e formação que contribuíram para a modernização do cinema brasileiro.  Em um período em que não existiam cursos superiores de formação em cinema no Brasil, as sessões cineclubistas ajudaram a formar muitos profissionais que se destacariam nas décadas seguintes na crítica e na realização cinematográficas.

Mesmo distante de Manaus, Cosme teve papel ativo e fundamental para fomentar as atividades cineclubistas amazonenses nesse período. Além de ajudar a conseguir os filmes a partir do acervo da cinemateca do MAM-RJ e de sua ampla rede de contatos em embaixadas e cinematecas, ele se aproveitou da estrutura empresarial da família para facilitar ou mesmo financiar o envio das cópias para a cidade, arcando com os custos da operação. A experiência de Cosme com o cineclubismo fortaleceu sua convicção de que os filmes deveriam circular e ser vistos e o cinema no Amazonas deve muito a isso.

[1] Pesquisa financiada pela Fapeam por meio do edital Universal Amazonas 2013