Gregory House está no mesmo panteão de Walter White e Tony Soprano. Todos os três são anti-heróis clássicos com atitudes detestáveis ao longo do tempo passando por cima de valores éticos e morais a cada instante. Por outro lado, todos apresentam fragilidades sejam físicas ou psicológicas e inteligência fora do normal para causar empatia do público a ponto de torcemos para que consigam seus objetivos custem o que custar. A diferença entre o trio, porém, está na condução feita durante as temporadas e no entorno que cerca esses personagens.

“House M.D.” surgiu com o intuito de ser o Sherlock Holmes da medicina na televisão: uma equipe de três médicos liderada por um doutor genial desvendando os casos mais impossíveis de serem solucionados através de pistas a cada nova tentativa de cura e investigações forenses. A ideia pretendia fugir do padrão novela adotado por séries do gênero como “E.R. – Plantão Médico” e “Grey’s Anatomy”, sendo mais semelhante ao feito pela turma do “C.S.I” e produções de suspense. Para se diferenciar ainda mais, o programa ainda trazia a presença como produtor executivo do então badalado Bryan Singer, responsável por dar o pontapé inicial na invasão dos quadrinhos nos cinemas com “X-Men”.

dr house hugh laurie maquiagem palhaçoTodos esses elementos estavam a serviço de um protagonista arrogante, sarcástico, viciado em remédios, sem habilidade para o convívio humano e com uma crença inabalável de que todos mentem. Apesar de ter tudo para causar a fuga dos telespectadores, o público se apaixonou pelo estilo cortante de Gregory House. O charme do protagonista com a brilhante capacidade intelectual para resolver os mistérios mais intrincados da medicina e as frases repletas de ironias nas conversas com colegas de trabalho faziam dele um cara a ser admirado por vias tortas. Os conflitos éticos e morais embutidos em cada episódio de um médico viciado no forte analgésico Vicodin para aguentar o insuportável – a dor ocasionada por um enfarte na coxa esquerda revelada no brilhante episódio “Three Stories” da primeira temporada – e a sua constante rejeição a fatores ligados ao misticismo em defesa dos valores científicos tornavam os episódios ricos em boas discussões sobre a fé e a ciência sempre com um bom humor a tiracolo, sendo uma atração de alto nível longe do entretenimento banal.

Hugh Laurie deixou todo o sotaque britânico de lado e encaixou como uma luva no personagem, sendo versátil ao divertir nos momentos sarcásticos, além de não dever em nada quando se pedia trechos dramáticos de igual densidade. Durante o decorrer das temporadas, o ator se tornou a alma do seriado ao ponto de exercer as funções de produtor e diretor em dois episódios (“Lockdown” em 2010 e “The C Word” em 2012) sem falar na veia roqueira e de blues adotada pela trilha sonora, o que ajudava a carreira de Laurie como músico.

Tudo nas costas de House

wilson robert sean leonard houseEssa força de Gregory House, porém, não encontrou ressonância nos coadjuvantes. Como todos eram presas fáceis para as piadas e jogos do protagonista, a sensação era que os outros personagens serviam de grandes marionetes sem personalidade para se impor nenhuma vez sequer. Chase (Jesse Spencer), por exemplo, estava ali muito mais para ser galã do que necessariamente por ser uma figura interessante, o que o levou a ficar na aba de House por mais tempo que qualquer outro do trio original. Foreman (Omar Epps) até tentou se desvencilhar, porém, sempre caía nas armadilhas do chefe. Não à toa que Cameron (Jennifer Morrison) sempre retornou com boa aprovação dos fãs por ter sido, ao lado de Amber (Anne Dudek), as únicas capazes de colocar House contra a parede.

Semelhante a Dr. Watson para Sherlock Holmes, Wilson foi o grande parceiro de House nas oito temporadas da série. De todas as vítimas das crueldades do protagonista, ninguém sofreu mais do que o personagem de Robert Sean Leonard. Não bastando todas as pegadinhas, o best friend chegou até a perder namorada por causa do amigo nos excelentes dois últimos episódios da quarta temporada. Se incomoda a forma como Wilson se coloca como sujeito quase sem vida própria pelas constantes sabotagens de House e a forma apática, infantil como lida com o problema, por outro lado, entende-se a sua importância na série ao percebemos ser o principal elo com a humanidade do protagonista.

Com um pouco mais de autonomia sobre si própria, Cuddy (Lisa Edelstein) fazia esse outro elo de humanização de House. A tensão sexual entre os dois sempre gerou bons momentos tanto que o primeiro beijo da dupla rendeu expectativa e causou comoção ao acontecer. Ela, entretanto, sofreu com o descaso dos roteiristas para com os coadjuvantes e pela falta de criatividade teve que se envolver com o maior erro do programa: o detetive particular metido a engraçadinho e “esperto” Lucas Douglas. Surgiu para ser concorrente de House e sumiu como um paciente atendido pelo médico.

O esquemático roteiro

jennifer morrison house m.d. cameronDiga-se de passagem, criatividade não era o forte de “House M.D.”. O espectador mais atento pode observar que a construção dos episódios se repete de forma sistemática exceto por dois a três episódios na temporada focados em uma figura além do protagonista, rendendo os melhores capítulos da série. A regra básica do programa era esta:

– dois personagens aleatórios em uma situação inusitada (qualquer coisa vale – guerra, espaço, esporte, gravação de filme, situação no colégio). Um está bem ou outro se sentindo mal. Em pouco mais de dois minutos, quem estava normal cai duro no chão ou começa a ficar com uma sensação anormal. Eis o paciente da vez.

– vinheta

– Foreman, Cuddy, Wilson e a equipe pressionam House a aceitar o caso. Ele não quer até que alguém fale algo bizarro ou sugira algo em troca. Com desdém, o protagonista aceita e indica um tratamento.

–  Paciente no quarto conversa com algum familiar na hora em que médicos chegam para levá-lo a exame (em especial, na sala de tomografia para ver a equipe em conversas sobre a vida).

– House vai encher o saco de Cuddy e/ou Wilson por besteira.

– Antes do fim do primeiro bloco, paciente tem um novo sintoma.

– Médicos conversam sobre o novo sintoma e algum deles dá uma sugestão do que pode ser – lúpus, autoimune e sarcoidose são as mais constantes. House acata e divide a equipe: uns fazem exames e outros vão na casa do paciente.

– House enche o saco de Wilson e/ou Cuddy por besteira; equipe médica fica tricotando até achar uma nova pista sobre a doença.

– Antes do fim do segundo bloco, paciente passa mal de forma grave e fica entubado ou está entre a vida e a morte.

– Terceiro bloco começa com uma preocupação maior da equipe com o paciente. Nova sugestão de tratamento.

– House enche o saco de Wilson e/ou Cuddy, enquanto a equipe médica se mete na vida do paciente o condenando ou o acompanhante.

–  Bips dos médicos tocam e o paciente entra em nova crise. Mais testes e exames. House sentado no corredor vendo o doente de longe (dependendo do episódio, ele vai conversar com o sujeito ou com o acompanhante).

– Já no quarto bloco, a situação continua ruim para o paciente até que House, em uma conversa com Wilson e/ou Cuddy sobre o surgimento do blues americano ou sobre o defeito na geladeira ou qualquer coisa fora do contexto, ouve uma expressão, faz cara de mistério e vaza.

– Próxima cena traz House no quarto do paciente explicando com recursos da equipe de efeitos especiais o que ocasionou a doença. Uma injeção e o sujeito quase morto sai novinho em folha.

– Fundo musical de blues ou rock com cenas de vários personagens fixos da série e do paciente daquele episódio. Hora de ver House como Hugh Laurie em um piano.

– Última cena traz um gancho sobre a vida de House para o próximo episódio.

omar epps dr eric foreman house m.d.Insira piadas para House e está feito 80% dos episódios da série. Esse formato até a quarta temporada resistiu com qualidade pelo fato de ser diferente, porém, o passar do tempo engessou o programa a ponto dos casos apresentados não serem mais surpreendentes como antes. A falta de criatividade chegou a níveis alarmantes no episódio “Locked”, uma cópia descarada da proposta do belíssimo “O Escafandro e a Borboleta” e nos dois primeiros programas da sexta temporada iguaizinhos ao clássico “Um Estranho no Ninho”.

Os dramas do protagonista, em especial, na sétima e oitava temporada, passaram a ser birras de garoto mimado perto do médico respeitado de antes. O comportamento tolo com Wilson e a forma como o romance com Cuddy se desenvolveu reduziram o programa a um novelão barato tendo um idiota como estrela. A decadência da série atingiu níveis preocupantes quando House começou a agir como um fofoqueiro jogando a esquisita Chi Park (Charlyne Pi) para cima de Chase ou zoando o desinteressante Taub (Peter Jacobson) em relação ao casamento deste. Onde fora parar aquele sujeito brilhante era a pergunta feita por quem acompanhava a série.

Desgaste e ícone pop

Diferente de “A Família Soprano” e “Breaking Bad”, com temporadas de menor duração (13 episódios em média), “House M.D.” sofreu o desgaste parecido ao de “Lost” com 22 a 24 capítulos por ano. Com tantos programas a serem exibidos, se torna natural uma queda no rendimento com muitos episódios sem grandes atrativos e um andamento arrastado da trama.

De qualquer maneira e problemas à parte, “House M.D.” se mostrou uma obra de qualidade elevada por ótimos diálogos, a fugir do estereótipo das séries médicas e a discussão de questões éticas sobre a ciência e a fé. Nada disso, entretanto, teria valor se não fosse o talento de Hugh Laurie capaz de construir um ícone pop.

house m.d. banner wallpaper elenco

CINCO MELHORES EPISÓDIOS DE HOUSE M.D.:

Three Stories (último episódio da primeira temporada): fugiu do esquemático roteiro da série ao trazer o protagonista em uma palestra sobre três casos médicos delicados. No fim do episódio, descobrimos se tratar sobre como House teve o problema na perna. Clássico.

No Reason (último episódio da segunda temporada): paciente invade o Princeton-Plainsboro e atira contra House. O protagonista se recupera e passa a não sentir mais dores na perna. House, entretanto, passa a duvidar da própria sanidade e resolve fazer uma loucura na sala de cirurgia.

Airborne (episódio no meio da terceira temporada): doença se espalha em avião com House e Cuddy entre os passageiros. No hospital, outro caso complicado. Expandindo as possibilidades dentro do formato consagrado, a série traz um dos capítulos mais divertidos de sua história.

Wilson’s Dead (último episódio da quarta temporada): o auge de “House, M.D.” mostra as consequências de um terrível acidente de ônibus. A despedida de Amber e Wilson deixa qualquer machão com lágrimas nos olhos.

Under My Skin (penúltimo episódio da quinta temporada): House está alucinando cada vez mais com Amber. Perto da crise de sanidade, ele encontra a saída em Cuddy e os dois, finalmente, se beijam.