Estradas e aeroportos são figuras recorrentes que permeiam as buscas e transformações dos personagens no cinema de Karim Aïnouz, cineasta brasileiro responsável por filmes como “Madame Satã”, “O Céu de Suely”, “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, “O Abismo Prateado” e “Praia do Futuro”.

Morando atualmente em Berlim, Karim cresceu passando também por vários aeroportos e estradas para visitar seu pai. Entre os tantos que já visitou e filmou, o antigo aeroporto Tempelhof, em Berlim, virou o tema central do seu novo longa-metragem. O local viu seus hangares serem transformados em abrigo para refugiados da Síria e do Iraque durante dois anos.

O documentário “Aeroporto Central” é um olhar sobre Berlim, capital da Alemanha, a partir da história do jovem sírio Ibrahim. Ele vive no aeroporto Tempelhof, uma construção nazista, enquanto aguarda as autoridades decidirem sobre sua permanência no país. Lançado na 42ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo, o filme aborda os sentimentos do protagonista em relação ao não-lugar que ocupa.

O Cine Set conversou com Karim Aïnouz em uma entrevista feita via Skype.

Cine Set: Como você entrou em contato com essa história e como ela se transformou no projeto do documentário?

Karim Ainouz: Eu moro perto do Tempelhof e costumava ir bastante lá porque também é utilizado como um parque pelos cidadãos. Determinado dia, vi aquelas pessoas sendo trazidas e alocadas nos hangares. Eu sabia que a Alemanha estava recebendo pessoas da Síria e do Iraque, mas a maneira que a mídia hegemônica tratava a situação me incomodava muito. Sempre mostravam multidões de pessoas chegando, como se fosse uma invasão de um filme de ficção científica, sem humanidade, somente números.

Queria muito me engajar de alguma forma e decidi documentar aquilo que estava acontecendo ali ao lado da minha casa para contar uma história diferente do que vinha sendo contada. Mesmo sem o financiamento ideal, eu estava muito determinado porque ninguém estava filmando aquilo e, mesmo que não virasse um filme, seria um documento para gerações futuras e mostrar o que estava acontecendo na Alemanha naquela época, a partir de pontos de vista singulares.

Logo, não era sobre uma ficção: tratava-se de documentar um momento de chegada de pessoas em um novo continente. Não me interessava tanto falar de como foi o percurso de saída do outro país, mas como seria a convivência dessas pessoas no país que elas estão agora.

Cine Set: Como foi a recepção dessas pessoas e a relação entre vocês durante o processo de filmagem?

Karim Ainouz: No começo, ninguém queria ser filmado porque estavam todos chegando em uma situação de precariedade absoluta. Mesmo assim, eu continuei frequentando o abrigo e pensei até em escrever uma reportagem, mesmo nunca tendo feito uma na vida. Seria uma forma de registrar o que estava acontecendo ali, já que não podia filmar.

Seis meses depois de tanto ir lá, acho que as pessoas cansaram de mim e me deixaram filmar. Isso, claro, com a permissão da instituição que tomava conta do abrigo. Criou-se uma relação de confiança e consentimento.

Acho que outra coisa muito importante foi verem que eu não era de lá (da Alemanha). Mesmo tendo uma experiência totalmente diferente da deles, eu também era visto como uma pessoa de fora e, principalmente, o meu nome ser um nome clássico árabe ajudou bastante. Acredito que teve uma abertura e curiosidade por ser brasileiro, olhando aquele estado de coisas para saber quem eu era.

Tanto que, no final da filmagem, aconteceu uma coisa engraçada: o Ibrahim disse que achava que eu estava mentindo para eles que não falava árabe, para tentar entender o que eles estavam falando. Então, eu acho que esse lugar específico de fala que eu tinha me permitiu essa abertura com eles.

Cine Set: Como foi o processo de escolha dos personagens, das histórias que vocês iriam aprofundar?

Karim Ainouz: Foi muito importante ver quem que queria contar a sua própria história. Eram oito personagens, não só dois, mas eu não sabia quem iria permanecer ali durante tempo que queria filmar (um ano, ao todo). Na época, fiquei pensando que seria muito importante fazer um livro com as histórias deles, já que eles não tinham acesso aos equipamentos de filmagem e a edição para se filmarem.

Daí, eu e a minha assistente, a Camila Gonzatto, fizemos algumas oficinas de escrita para estimular a imaginação e irem escrevendo algumas coisas como, por exemplo, o último dia na cidade que estavam antes de virem para Berlim ou o primeiro dia em que chegaram aqui ou mesmo as lembranças de casa. A gente propôs vários exercícios práticos e ficou muito claro quem queria contar a sua história e quem não tava aberto a isso.

Naturalmente, o Ibrahim e o Qutaiba foram os que mais se mostraram dispostos em compartilhar o que estavam vivendo. Para se ter uma ideia, eles continuaram escrevendo mesmo depois do filme – o Ibrahim hoje tem mais de 200 páginas retratando desde o momento que saiu de lá, enquanto o Qutaiba tem vontade de escrever um livro sobre a vivência dele no Iraque.

Cine Set: A ressignificação desse lugar que antes foi espaço militar nazista e agora acolhe refugiados, além de também ser um espaço público conquistado, reflete uma mudança na cidade de Berlim?

Karim Ainouz: Para mim, era muito importante entender que aquele microcosmo ali – daquelas pessoas que chegaram para passar três meses e acabaram ficando por dois anos – também era um pouco o retrato da própria cidade que passou por momentos traumáticos desde a Primeira Guerra e que está sempre se reinventando.

Essa ressignificação dos espaços e, principalmente, dos hangares do aeroporto me interessava muito como uma possibilidade de também fazer um registro instantâneo do que estava acontecendo na cidade de Berlim e como você negocia essas mudanças. Essas camadas para mim eram muito interessantes de mostrar e eu sei que é um lugar difícil de estar ali, de se viver, mas, ao mesmo tempo, uma coisa muito bonita que eu via era que existe esperança no ser humano. Acho que, apesar das condições precárias e da dureza que é estar ali, acredito que são personagens que estão sempre olhando para frente.

Cine Set: O contexto desses refugiados, que são da Síria e do Iraque, traz maior importância ao registro dessas memórias e sentimentos?

Karim Ainouz: Sim, acho que era muito importante construir o retrato de homens árabes de uma maneira positiva. A masculinidade árabe nos últimos anos tem sido muito demonizada. Quando você pensa em um homem árabe imagina logo um terrorista, bomba, perigo e, na verdade, são todos seres humanos. Os terroristas são uma minoria na comunidade.

Ficou muito claro no decorrer do processo que era importante fazer o retrato desses dois homens árabes, o Ibrahim e o Qutaiba. O Ibrahim tinha 18 anos e a vida pela frente; hoje em dia, ele é gerente de um cinema, aprendeu alemão muito rápido e tem uma energia de começar de novo, apesar da dor e o trauma do passado ainda muito potente. Já o Qutaiba teve maior dificuldade de aprender o alemão, mas está aqui e acabou de ter bebê na semana passada. Então, me interessava olhar para esses dois lugares de gerações diferentes de homens árabes e como eles recomeçaram as vidas.

Por mais que o imigrante seja bem tratado, principalmente o árabe, existe sempre uma situação de hostilidade que não é pequena. Queria construir um retrato íntimo de personagens que são absolutamente invisíveis dentro do contexto dessa nova imigração da Europa, são personagens ignorados e não tratados como seres humanos, mas, como números pela mídia. Considero que o filme não terminou; tenho muita vontade de a cada quatro, cinco anos continuar seguindo esses mesmos personagens para entender como é esse processo de convivência na cidade de lidar com essa nova situação de vida.