O falar rápido, a postura independente e, claro, as inseparáveis calças. Esses três quesitos são logo associados a Katharine Hepburn. Ela foi sinônimo de feminismo e rebeldia em uma época em que (mais do que agora) chefes de estúdio mandavam em cada passo das estrelas. Mulher que mais venceu Oscars na história – são 4, todos de melhor atriz -, nunca apareceu para receber suas estatuetas. Ela, aliás, foi por muito tempo a recordista de indicações ao prêmio, até que chegou uma mocinha chamada Meryl Streep e o resto é história.

Katharine nasceu em Hartford, Connecticut, no ano de 1907. Ela já veio ao mundo como uma feminista. Filha de uma sufragista, ela contava em entrevistas que passou a infância confeccionando cartazes usados em protestos. O pai era um urologista que atuava em movimentos de educação de saúde à população.

Na infância, foi o que se define como “tomboy”: uma “moleca”, na tradução mais fácil. A preferência por calças em detrimento de vestidos começou a aparecer na juventude. Instruída desde cedo sobre o que acontecia no mundo, Katharine passou longe de ser uma jovem alienada. No entanto, parou de ir à escola após o trauma da morte do irmão mais velho, Tom.

O primeiro contato com o teatro veio cedo, aos 17 anos, quando ela entrou na universidade. A jovem mantinha boas notas, principalmente porque essa era a condição para que os alunos participassem das peças de teatro.

Com a confiança que ganhou no teatro universitário, a atriz começou a aparecer em produções mais profissionais até que finalmente chegou aos palcos da Broadway. Aos 21 anos, estreou no circuito teatral mais ilustre de Nova York em uma montagem de “Boêmio Encantador”. Uma década depois, reviveria o texto de Philip Barry, desta vez no cinema.

É bom ressaltar que Kate não foi um sucesso imediato nos palcos. Sua personalidade rebelde foi desculpa para algumas demissões ao longo do caminho, e a combinação de sua voz única com o sotaque de-ninguém-sabe-bem-onde levantou as sobrancelhas dos críticos mais ferrenhos. Como ela mesma conta em uma espirituosa entrevista a Dick Cavett nos anos 1970, nem mesmo seu pai, tão liberal e incentivador, conseguia ver futuro na profissão de atriz: “Ele disse que não era um trabalho saudável (…), já minha mãe ficou feliz de me ver fazer algo que não casar”, conta.

Mas isso não significa que Hepburn tenha fugido do altar. A atriz participou de outras montagens teatrais e, nesse meio tempo, se casou com Ludlow Ogden Smith, seu único marido, com quem ficou até 1941.

Enquanto isso, o talento e a confiança da atriz conseguiam suprimir as intempéries da carreira, e, a exemplo do que acontecia naquela época com outros atores, o boca a boca sobre Hepburn no teatro logo chegou aos ouvidos de uma Hollywood pós-Mary Pickford e Charlie Chaplin – ou seja, uma indústria que já sabia o poder das grandes estrelas.

Hepburn pisou na Califórnia em 1931 para fazer seu primeiro filme, “Vítimas do Divórcio” (1932). Logo de cara, iniciou uma parceria que seria seminal para sua longa carreira, já que nesta produção ela foi dirigida pela primeira vez por George Cukor, com quem trabalharia ainda outras sete vezes.

Em sua estreia, Kate é uma escada para o já tarimbado John Barrymore (da primeira geração de uma dinastia hoje representada por sua neta, Drew), mas consegue se segurar em cena, e até roubar alguns momentos, como que dando um aperitivo do que viria a seguir.

Contratada pela RKO, ela foi a aposta do estúdio logo de cara, e já mostrou a que veio no ano seguinte, com “Manhã de Glória” (1933). No filme, ela volta às origens ao viver uma atriz em início de carreira no teatro. A exemplo do que ocorreu em “Vítimas do Divórcio”, aqui Hepburn divide a cena com outro astro famoso daquela época, Douglas Fairbanks Jr. O filme rendeu o primeiro dos quatro Oscars da atriz e o testemunho de que nascia uma estrela.

Uma estrela que, desde o início, fugia das convenções. Ainda em 1933, Hepburn foi protagonista de “Assim Amam as Mulheres”, de Dorothy Arzner, única mulher a dirigir filmes de grandes estúdios naquela década. Infelizmente, a produção é um tanto quanto difícil de ser encontrada, com alguns poucos clipes no Youtube mostrando a excelência da atriz neste romance.

O ano de 1933 finalizou com outro título importante na carreira da estrela, “As Quatro Irmãs”. O filme é uma adaptação do romance “Mulherzinhas”, de Louisa May Alcott, e a interpretação de Hepburn como a tomboy Jo é quase uma celebração à juventude da atriz. A personagem voltaria a ser vivida em outras adaptações, incluindo a de 1994 com Winona Ryder no papel, mas é a sinceridade e a candura discreta de Hepburn que conferem à protagonista um ar tridimensional a uma época em que o conservadorismo e a crise do pós-crash de 1929 e pré-Segunda Guerra pairavam sobre os Estados Unidos.

Hepburn foi premiada no Festival de Veneza pelo filme, que foi um sucesso de bilheteria. Ela parecia fadada ao estrelato, mas os primeiros fracassos começaram a aparecer – um deles foi “Vivendo em Dúvida” (1935).

Junto a seu futuro parceiro frequente Cary Grant, então novidade da indústria, a estrela seguiu em uma maré de má sorte, que lhe conferiu o apelido de “box office poison” (algo como ‘veneno de bilheteria’, em tradução livre), alcunha que a indústria dava a atores que recebiam salários altos, mas não conseguiam fazer valer esses pagamentos quando seus filmes eram lançados. Além de Kate, Fred Astaire, Joan Crawford e Greta Garbo também foram “agraciados” com o título.

Um dos filmes que Hepburn lançou ao longo destes quatro longos anos foi “Levada da Breca” (1938). A produção de Howard Hawks lhe colocou novamente em cena com Cary Grant e foi elogiada pela crítica ao passo em que revelou seu talento exímio para a comédia screwball, tipo de cinema que era uma das minas de ouro de Hollywood naquela época.

O problema é que ninguém se interessou em ver a atriz brincar de gato e rato com Grant e seu status de “veneno de bilheteria” foi oficializado. Ela voltaria a trabalhar com o ator na versão cinematográfica de “Boêmio Encantador”, mas, dez anos após a sua estreia nos palcos, os prospectos de sua carreira pareciam desanimadores.

Naquela época, Kate já era considerada de difícil trato. Sem paciência para colaborar com os chefes de estúdio nas campanhas para os filmes e mais interessada em cultivar sua vida pessoal longe dos holofotes, ela resolveu dar um até logo a Hollywood e respirar novos ares no teatro. Foi nos palcos que ela se reinventou. A década de 1940 começou e, com ela, uma Katharine Hepburn pronta para não deixar Hollywood lhe engolir viva.


A fênix e a parceria que mudou sua carreira

O ano era 1940. Cary Grant, mais uma vez. Do outro lado, James Stewart, um ator que se tornava um queridinho da indústria com uma carreira em ascensão. O filme era “Núpcias de Escândalo”. Uma Katharine Hepburn lânguida surge ainda mais verborrágica nesta adaptação da peça que, em seu pequeno hiato de Hollywood, foi seu primeiro sucesso no teatro em anos.

Ainda que datado hoje em dia, “Núpcias…” é mais um exemplo da química da atriz com Cary Grant, que finalmente fez chover dinheiro nas bilheterias dos Estados Unidos. Em seguida, veio um filme que mudaria sua vida para sempre.

“A Mulher do Dia” (1942) não lhe deu um segundo Oscar (mas rendeu indicação, claro) e nem está entre suas cinco melhores atuações, mas foi o filme que lhe colocou pela primeira vez em cena com Spencer Tracy, ator que seria seu parceiro de cena e de vida pelos anos que seguiram.

A comédia de George Stevens é uma das onde a persona feminista de Hepburn mais brilha. Dos longos closes da protagonista chorando e tendo epifania no casamento de seu pai à divertida cena onde ela tenta ser uma dona de casa, a comédia é um playground para a versatilidade da atriz, e, principalmente, para a química entre ela e Tracy, palpável sem precisar de diálogos. A cumplicidade já existia.

Os dois voltaram a trabalhar juntos já no ano seguinte, com o errático “O Fogo Sagrado” (1943). Falando em errático, aquele mesmo ano trouxe o maior tropeço da carreira de Hepburn, com “A Estirpe do Dragão”. No filme, ela segue o exemplo de colegas como Mickey Rooney e Louise Rainer e aparece como uma mulher chinesa, com direito a olhos puxados, na companhia de outro grande ator asiático (só que não), Walter Huston.

Quando se coloca em contexto que o filme foi produzido em plena Segunda Guerra e em uma época onde não havia vista grossa para o whitewashing (que existe até hoje), o negócio fica ainda mais complicado. Nem as grandes escapam de erros crassos.

Em contrapartida, a relação de Kate com Spencer Tracy florescia dentro e fora das telas. O casal começou a virar trunfo da indústria, que parecia finalmente saber como “vender” a atriz (sempre precisando colocar a mulher ao lado de um homem…). Hepburn já era uma mulher divorciada, mas Tracy seguiu casado e o romance extraconjugal era um grande segredo aberto, assim como o romance que a atriz cultivou com Howard Hughes anos antes (e que, se vocês bem lembram, foi parte importante de ‘O Aviador’, de Martin Scorsese).

A década de 1940 terminou com a parceria Tracy-Hepburn em “A Costela de Adão” (1949), sucesso de bilheteria mais uma vez galgado no casal.


A maturidade

Para os standards de Hollywood, a Kate Hepburn que iniciou a década de 1950 não tinha mais motivo para viver mocinhas em comédias românticas. Os anos seguintes veriam a ascensão de novos rostos, prontos para serem moldados, como a “xará de sobrenome” Audrey Hepburn, Marilyn Monroe, Grace Kelly.

A exemplo de Vivien Leigh, que iniciava uma entressafra na carreira, e Ingrid Bergman, que passaria a ser persona non grata em um dos momentos mais machistas da indústria e da sociedade (e olha que a competição é grande), Katharine já tinha mostrado o que podia fazer enquanto estrela com o nome rodeado de luzes. A atriz aproveitou a chegada dos 40 anos para apontar para uma nova direção em sua carreira, rumo à longevidade.

O primeiro passo foi em 1951, com “Uma Aventura na África”, filme que lhe colocou lado a lado com Humphrey Bogart. Emoldurada pelas cores vibrantes do technicolor, Kate é encanto puro em um filme que põe seu talento para diálogos fortes à prova. Assim como outros títulos de sua filmografia, “Uma Aventura…” é um filme que não passa o teste do tempo, mas tem seu valor ao mostrar o nascimento da segunda fase da trajetória da atriz em frente às câmeras.

Kate passou a trabalhar menos no cinema. Se antes entregava três, quatro filmes por ano, agora começava a espaçar mais os filmes e se dedicar ao teatro. Começou a encenar Shakespeare e a exercitar sua voz única em textos de outros dramaturgos famosos, que seriam fundamentais nas suas últimas décadas de trabalho.

A atriz surgiu na companhia de Bob Hope no equivocadíssimo “A Saia de Ferro”, com Rossano Brazzi no doce “Quando o Coração Floresce” – onde foi dirigida por David Lean, que capturou Hepburn em toda a sua beleza em plena Itália -, e, claro, com o parceiro no crime Spencer Tracy nos divertidos “Amor Eletrônico” (subestimada parceria do casal, já maduro) e “A Mulher Absoluta”.

Em 1959, Kate tem uma personagem complexa no difícil, porém instigante, “De Repente, No Último Verão”. Colocada como contraponto à exuberante Elizabeth Taylor, ela é emoção e visceralidade pura no texto de Tennessee Williams.

A “teatralidade filmada” volta a lhe chamar em 1962, quando aparece em “Longa Jornada Noite Adentro”, filme de Sidney Lumet baseado na peça de Eugene O’Neill (que também roteirizou o longa). Hepburn parece mais uma vez ter sido feita para textos longos e intensos (o que não teria realizado para um Mike Nichols da vida…) e, para traduzir livremente um dizer famoso do teatro norte-americano, mastiga o cenário a cada vez que aparece.

O trabalho seguinte seria carregado de emoção. Com poucas aparições na telona nos anos 1960 por conta da saúde frágil do companheiro Spencer Tracy, ela retorna em 1967 junto a ele para uma última participação juntos, no importante “Adivinhe Quem Vem Para Jantar”. Filme de timing preciso, o drama dirigido por Stanley Kramer é um retrato da América naquela década e é um interessante contraponto quando colocado perto de outros títulos lançados naquele ano, como o ousado “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas”, que enterrou de vez o cinemão que Hollywood conhecia. Era quase uma passagem de bastão para a geração seguinte.

Além da mensagem social importante – turbinada no ano passado de forma brilhante em “Corra!” -, “Adivinhe…” será sempre lembrado por ter sido a última aparição de Spencer Tracy no cinema. O monólogo final do ator teve emoção dupla – além do forte discurso sobre racismo e sobre o amor entre a filha e o personagem de Sidney Poitier, as palavras também foram as derradeiras de Tracy em cena, e as lágrimas derramadas por Kate ao vê-lo e ouvi-lo falar também refletem a dor de perceber o companheiro debilitado e em seus últimos momentos. Tracy morreu menos de um mês após o fim das filmagens.

Pelo filme, Hepburn ganhou seu segundo Oscar, após um intervalo de mais de 30 anos. Era a prova definitiva de uma carreira de transformações e reinvenções. No ano seguinte, ela voltou a se desafiar e fez aquele que é seu melhor trabalho: “O Leão no Inverno” (1968), de Anthony Harvey. A dobradinha da atriz com Peter O’Toole é um presente para qualquer cinéfilo, que tem a chance de ver dois pesos pesados de gerações diferentes e mais um embate teatral para o currículo de Kate. O que veio em 1969 foi seu terceiro Oscar – o segundo seguido – anunciado com alegria por Ingrid Bergman. Era um empate!, e quase que um diálogo entre duas Hollywoods, já que a outra vencedora era uma novata que, ao contrário de Kate, adorava os holofotes: Barbra Streisand.

Com a morte de Spencer Tracy, Katharine Hepburn voltou a trabalhar em um ritmo mais intenso no cinema. Um de seus melhores filmes pós-”O Leão no Inverno” foi “As Troianas” (1971), onde a atriz mais madura lidera um elenco feminino (incluindo a jovem Vanessa Redgrave, sensação nos anos 1960) em um retrato sobre as mulheres de Troia.

A televisão também começou a oferecer papéis interessantes à Kate, que já não dialogava com a Hollywood mais sangrenta que apareceu com Arthur Penn, Martin Scorsese e companhia. Em 1973, ela fez “The Glass Menagerie” (mais uma adaptação teatral) e, dois anos depois, voltou a ser dirigida por George Cukor em “Amor Entre Ruínas”, filme no qual dividiu cena com Laurence Olivier.

Em 1981, fez seu último grande papel no cinema, que foi ainda a despedida de outro ícone da Era de Ouro. Em “Num Lago Dourado”, Katharine e Henry Fonda tiveram mais uma chance de brilhar, com um texto delicado e que conseguiu tocar em feridas abertas dos próprios atores, incluindo aqui a filha dele, Jane, que até hoje dá entrevistas falando sobre a relação difícil com Hepburn durante as filmagens.

O “último entardecer” da dupla foi celebrado por Hollywood e, no ano seguinte, Kate recebeu sua décima segunda indicação ao Oscar – um recorde para qualquer ator até então.

Henry foi finalmente premiado como melhor ator e ela ganhou seu quarto e último prêmio da Academia, batendo Marsha Mason, Susan Sarandon, Diane Keaton e Meryl Streep, que seria sua herdeira “apenas” no quesito recordista de indicações ao Oscar – Kate nunca escondeu que não era muito fã de Streep, a quem considerava um “robôzinho” enquanto atriz. A estrela, no entanto, era admiradora de outra loira, Glenn Close. Não que Streep tenha do que reclamar, porque se Kate a esnobava, Bette Davis a cobria de elogios públicos.

Após o quarto Oscar, a já idosa Katharine Hepburn ainda fez alguns trabalhos pontuais na televisão. No cinema, seu último trabalho lembrado é o remake de “Tarde Demais Pra Esquecer”, “Segredos do Coração” (1994), estrelado por Warren Beatty e Annette Bening.

Kate morreu quase uma década depois, aos 96 anos. Não chegou nem a conhecer Cate Blanchett, que viria a ganhar um Oscar por interpretá-la em “O Aviador”, mas seguiu presente nas memórias dos cinéfilos.

Ainda que seu recorde na premiação seja um dia igualado, provavelmente por Meryl, ela deixou um legado que vai além de quatro estatuetas douradas. Falou o que pensava quando poderia ser punida por isso, viveu uma vida longe dos holofotes enquanto os estúdios clamavam por estrelas que conseguiriam moldar, e vestiu calças.

Sim, as famosas calças. Em 2004, Julia Roberts fez uma homenagem a Kate no Oscar, logo após a morte da atriz. Ela citou uma infame entrevista que Hepburn concedeu a Barbara Walters, onde diz, entre outros petardos, que ser atriz não era uma profissão tão nobre, já que Shirley Temple conseguia atuar tendo quatro anos. Sobre as calças, Kate disse que tinha um vestido e que iria usar no funeral da entrevistadora.

Uma rebelde que chegou a andar pelos estúdios da RKO de roupas íntimas quando teve suas calças “roubadas” de seu camarim. O que poderia ser uma simples peça de vestuário talvez fosse apenas isso para Kate. Mas, no grande escopo da coisa, foi um ato transgressor de uma feminista (quase que literalmente) de carteirinha.