Frases e cenas são capazes de marcar a carreira de um ator. Por mais versátil que ele seja, sempre há aquele momento em particular que fica na cabeça do espectador médio e, principalmente, de quem ama e acompanha o cinema com mais atenção. Alguns desses momentos aparecem quando o ator ou a atriz já é estabelecido na indústria (Meryl Streep e a entrada triunfal de Miranda Priestly em ‘O Diabo Veste Prada’ ou Marlon Brando surgindo nas sombras do escritório de Don Vito Corleone no primeiro ‘O Poderoso Chefão’, por exemplo).

Mas há ainda aqueles momentos que são magia cinematográfica pura, capazes de tornar um rosto ainda desconhecido em alguém que vai nos acompanhar para sempre, como é o caso de Julie Andrews descendo os céus de Londres munida de um guarda-chuva em “Mary Poppins”, ou de sua quase xará Julia Roberts cantando Prince na banheira em “Uma Linda Mulher”.

Em 1968, bastaram duas palavras para fazer de uma garota judia do Brooklyn uma estrela: “Hello, gorgeous”*. Essa singela saudação já indica que o assunto deste texto não poderia ser outro que não a diva Barbra Streisand.

*vamos traduzir como ‘olá, lindeza!’

‘Nasce uma estrela’

Justiça seja feita, quando “Funny Girl – A Garota Genial” chegou aos cinemas, a jovem Barbra não era tão desconhecida assim, pelo menos dentro do show business. Do alto de seu 1,65 metro, Barbra Joan Streisand chegou a Hollywood com a confiança de quem já havia conquistado a Broadway e o mundo da música com uma voz delicada e que parecia flutuar de acordo com a melodia.

Desde criança a menina Barbara (sim, ela já teve um ‘a’ a mais em seu nome) queria ser uma estrela. Filha de uma cantora que abandonou os palcos para trabalhar como secretária, a jovem teve uma infância difícil após a morte do pai. A televisão e o cinema foram companhia para a futura diva, que sonhava com uma existência menos, digamos assim, modesta.

Por influência da mãe, talvez, Barbra começou a soltar a voz e a impressionar a todos ao seu redor, mas seu sonho mesmo era ser atriz. Autodidata, ela tentava aprender por meio de literatura e de performances ao vivo no teatro mais sobre a arte de atuar.

Ao mesmo tempo, o lado cantora aflorava na escola, com as primeiras apresentações e a participação no coral. Décadas depois, Streisand foi apresentada a uma nova geração com as inúmeras menções na série “Glee”, cuja personagem principal era claramente inspirada na estrela e tinha por ela uma grande adoração. A eterna Funny Girl aproveitou o sucesso de “Glee” para lembrar que ela também havia feito parte de um ‘glee club’ na escola.

Barbra arregaçou as mangas em busca do estrelato, e conseguiu trabalhar nos bastidores de uma peça. O caminho da coxia para o palco ainda seria longo, e a atriz deu lugar à cantora da noite, e foi aí que a estrela de Barbra começou a brilhar. A voz única da estrela foi chamando a atenção e lhe deu as primeiras oportunidades no teatro.

Depois de algumas produções malfadadas, Barbra estreou de vez na Broadway com o musical “I Can Get It For You Wholesale”. A produção rendeu a ela a primeira indicação ao Tony e um casamento: a atriz se apaixonou pelo colega Eliott Gould (eternamente pai da Monica de Friends), seu colega de palco.


Que entre Fanny Brice

Antes de ser filme, “Funny Girl”  fez uma temporada de sucesso na Broadway e ajudou a colocar o nome de Barbra ainda mais em evidëncia. Antes da estreia em 1964, a voz da estrela já começava a ecoar em paragens hollywoodianas, com participações importantes em programas como o de Judy Garland e Ed Sullivan. Quando colocou os pés nos patins de Fanny Brice, Barbra já tinha álbum gravado e um repertório em formação.

“Funny Girl”  foi um sucesso e rendeu mais uma indicação ao Tony para a atriz. Não foi uma surpresa quando Hollywood quis tomá-la de vez, a exemplo do que havia acabado de acontecer com outra atriz de voz cristalina, a já citada Julie Andrews.

Com o subtítulo brasileiro de “A Garota Genial”, a adaptação de “Funny Girl” foi comandada por William Wyler – era o primeiro musical do diretor, já consagrado graças a sucessos como “Ben Hur” e “A Princesa e o Plebeu”. Barbra ficaria conhecida por se intrometer no trabalho dos diretores com quem trabalhava, e essa fama teve início em “Funny Girl”. Alguns atores do filme chegaram a reclamar por terem cenas cortadas em detrimento da trama principal, que envolvia Streisand (ué…).

Wyler, do outro lado, aproveitou de forma invasiva, até, o romance extraconjugal que Barbra mantinha com seu companheiro de cena, Omar Sharif. O diretor chegou a pedir que Sharif estivesse no estúdio para assistir a um dos momentos mais emocionais do longa, quando Fanny canta “My Man”, o que mexeu com os brios de Barbra, porque o caso já estava nas últimas, assim como seu casamento com Eliott Gould.

“Funny Girl” é um dos melhores filmes do exemplar “apresentação de estrela”. Do famoso “hello, gorgeous” aos números musicais mais elaborados em torno da própria estrela do que do mise-èn-scène de fato, o filme realmente mostrou Barbra em toda a sua capacidade.

A indústria estava prestando atenção, e Streisand venceu o Oscar de melhor atriz naquele que é um dos momentos mais curiosos da premiação: um empate! A jovem Barbra dividiu o prêmio com uma já consagrada Katharine Hepburn. A veterana, como todos sabem, não costumava aparecer nas cerimônias do Oscar, então a garota do Brooklyn teve o palco todo para si e, sabendo que esse seria um momento para a posteridade, cumprimentou a estatueta com um “hello, gorgeous”.

O ano seguinte foi de mais um projeto ambicioso, que, mesmo que não tenha se equiparado a “Funny Girl”, virou um clássico incompreendido na filmografia de Barbra. Falo de “Alô, Dolly!”, musical onde ela foi dirigida por Gene Kelly (!) em meio a um desfile de figurinos luxuosos.

William Wyler, Gene Kelly… O terceiro filme de Barbra a colocou sob a batuta de outro mestre da Sétima Arte, Vincente Minnelli. “Em Um Dia Claro de Verão” não tem o charme dos trabalhos anteriores da estrela, mas vale pela breve participação de um Jack Nicholson já-conhecido-mas-ainda-não-um-astro-de-cinema.


A estrela de cinema

A década de 1970 foi a de maior movimento na filmografia de Streisand. A atriz começou a fugir um pouco da persona cantora e surgiu em filmes que exploraram seus talentos de comediante, como “O Corujão e a Gatinha”.

Em 1972, ela juntou forças com Ryan O’Neal, recém-saído do sucesso estrondoso de “Love Story”. Os dois protagonizaram o divertidíssimo “Essa Pequena é Uma Parada”, filme de Peter Bogdanovich que resgata o ar de “gato e rato” que havia nas screwball comedies dos anos 1930. O cineasta escalou Barbra após perceber que a atriz tinha um ar de Carol Lombard, uma das estrelas mais importantes desse subgênero. O filme pavimentou o caminho para que Bogdanovich e O’Neal fizessem o singelo “Lua de Papel”. A atriz voltaria a se reunir com o colega de elenco no morno “Negócios Com Mulher, Nunca Mais”, de 1979.

Barbra, por sua vez, continuava gravando discos e emplacando sucessos, e começou a fazer isso também em trilhas sonoras, mesmo de filmes onde ela não aparecia cantando. Um exemplo foi com “Nosso Amor de Ontem”.

O drama de Sidney Pollack hoje fica escondido em meio aos outros grandes filmes da “Nova Hollywood”, apesar de tratar de política e polarização (olha o tema tão atual) com elegância. Foi um dos primeiros filmes a falar abertamente sobre o Macarthismo e a Caça às Bruxas, mas o que o público tirou mesmo dele foi a parceria irresistível de Barbra e Robert Redford. O romance dos dois foi embalado pela melosa “The Way We Were”, na voz da própria estrela. A atriz recebeu sua segunda indicação ao Oscar pelo papel de Katie.

Em 1975, Barbra voltou a viver Fanny Brice na continuação de “Funny Girl”. “Funny Lady” é um tropeço que não conserva em nada a essência da personagem no primeiro filme. As músicas esquecíveis, a performance cansada de James Caan e a resolução apressada do drama com o personagem de Omar Sharif são ingredientes que fizeram de “Funny Lady” uma sequência que nunca deveria ter sido feita.

Fracassos à parte, Barbra já estava à vontade para se envolver em projetos pessoais – ou o que o pessoal gosta de chamar de “projeto de vaidade”, principalmente quando a artista em questão é mulher (quando é homem, é projeto pessoal mesmo). Em 1976 ela protagonizou o segundo remake de “Nasce Uma Estrela”. A versão atualizada para os anos 1970 tem bons momentos, mas quando erra, erra feio e rude. Ou vocês acham que introduzir Barbra cantando soul com duas backing vocals negras em um grupo chamado The Oreos é uma boa ideia?

O diretor Frank Pierson chegou a reclamar publicamente do filme. Reza a lenda que Barbra dirigiu algumas cenas que só ela queria incluir. O resultado foi complicado, ainda mais quando se está sob a sombra do primeiro remake do filme, que conta com a entrega de Judy Garland. Mas, ainda que não haja um “The Man That Got Away”, o “Nasce Uma Estrela” de 76 cresce quando vemos uma leve emulação a “Funny Girl” em seus minutos finais.

O saldo acabou positivo para Barbra. O filme lhe rendeu seu segundo Oscar, agora na categoria de melhor canção original, pela deliciosamente cafona “Evergreen”. A carreira musical de Barbra foi tomando à frente ao fim daquela década, e ela entrou nos anos 1980 com novas ambições.


Nasce uma diretora

Barbra estava disposta a fazer história, e quase chegou lá com “Yentl”, musical dramático sobre uma garota que se disfarça de homem para poder estudar. Recebido com desdém por parte da indústria, o filme recebeu uma fama injusta, com direito a indicações ao Framboesa de Ouro. Isso eclipsa um pouco a importância do filme, primeiro de um grande estúdio a ser dirigido, protagonizado, produzido, roteirizado e de trilha sonora todos por uma mulher.

Mas se uma parte dos espectadores e colegas aproveitaram a Barbra desglamourizada de “Yentl” para fazer piadas com o perfeccionismo e os maneirismos da estrela, teve quem respondesse com aplausos. Foi o caso do Globo de Ouro, que concedeu um histórico prêmio de melhor direção a Streisand, que caminhava para ser a primeira mulher a ganhar o Oscar na categoria. Porém a Academia pela primeira vez lhe virou as costas e sequer a indicou.

Ora cantora com parcerias de sucesso com Donna Summer e Neil Diamond (seu ex-colega de escola!), ora atriz com o subestimado “Querem Me Enlouquecer”, de 1987, Barbra seguiu brincando com as possibilidades da sua carreira.

Em 1992 ela retornou à cadeira de direção e os resultados foram primorosos. Falo de “O Príncipe das Marés”, filme delicado em que ela aborda suicídio e recomeços amorosos, e capitaneado por uma atuação impecável de Nick Nolte. O Oscar continuou a ignorar Streisand, a despeito de uma indicação do Sindicato dos Diretores e de várias nomeações para o filme (ok, Barbra recebeu uma indicação como produtora, mas a Academia achou que ainda não era hora de reconhecê-la por completo).

Quatro anos depois, Barbra ficou novamente no “quase”, mas o azar é da Academia, porque, com “O Espelho Tem Duas Faces”, ela entregou uma comédia romântica madura e cheia de personalidade. A canção “I’ve finally Found someone” rendeu a Streisand sua (até agora) última indicação ao Oscar, mas o que todo mundo lembra mesmo é que Juliette Binoche estragou a festa de Lauren Bacall, favorita absoluta ao prêmio de coadjuvante por sua atuação como a mãe da estrela. A eterna diva do cinema noir foi reconhecida pela Academia anos depois com um prêmio de conjunto da obra, pouco antes de morrer.

Desde então, Barbra tem optado por uma vida mais tranquila, ao lado do atual marido, o ator James Brolin (também conhecido por ser o pai de Josh Brolin – imaginem os diálogos entre madrasta e enteado….). Ela ensaia um retorno à direção com uma nova versão do musical “Gipsy”. No ano passado, dirigiu um especial para o Netflix em que apresenta os grandes sucessos de sua carreira.

O cinema tem ficado de lado, apesar de algumas participações divertidas em filmes de pouco brilho, como “Entrando Numa Fria Maior Ainda” e “Minha Mãe é Uma Viagem”, que lhe rendeu uma indicação ao Framboesa de Ouro. Mas o que é isso perto de dois Oscars, um Tony de conjunto da obra, oito Grammys, quatro Emmys e inúmeros outros troféus? (*ler esta frase com voz de Susana Vieira para maior efeito*)

Barbra talvez seja lembrada como uma diva perfeccionista e dona de uma voz inconfundível, mas seu legado para o cinema não merece ficar relegado a maneirismos e histórias de bastidores. Ela foi, a seu modo, uma pioneira, que aproveitou todos os privilégios que uma carreira de sucesso lhe concedeu para tentar fazer algo a mais e contar histórias a seu modo. Que ela retorne logo ao comando de um longa-metragem. O cinema agradece.