No último filme que resenhei para o Cine Set, uma cineasta estreante tentava reanalisar a maternidade. Em contraposição, Anna Muylaert não é nenhuma iniciante, com uma vasta carreira que finalmente obteve reconhecimento internacional com o hit Que Horas Ela Volta?, seu quarto longa-metragem, outro filme sobre maternidade, particularmente tocado pela divisão de classes brasileira.

A despeito do título extremamente capcioso, seu novo projeto, “Mãe Só Há Uma”, não é uma revisita ao tema anterior, mas sim uma exploração sensível sobre as questões de identidade. A mãe, aqui, é uma força-motriz narrativa: as ações de Aracy (Dani Nefussi) criam desdobramentos que, anos depois, assombram a vida de Pierre (Naomi Nero), menino que ela sequestrou da maternidade e criou como seu filho.

A história é livremente inspirada no caso Pedrinho, que veio à tona em 2002. Como sua contraparte real, Pierre descobre, aos 17 anos, que foi vítima de um rapto, o que o coloca em uma rota de colisão emocional com a sua família biológica, composta por seu pai Matheus (Matheus Nachtergaele), sua mãe Glória (também Nefussi) e seu irmão Joaquim (Daniel Botelho).

O roteiro, também assinado por Muylaert, retorce o que poderia ser apenas um (bom) drama familiar para algo além, explorando a descoberta sexual de Pierre, que começa o filme fazendo sexo com uma garota, com a câmera se demorando nas lingeries femininas que ele usa no ato.

A expressão “descoberta sexual” é muito usada para descrever produções em que o protagonista reconhece sua própria homossexualidade. Aqui, não sabemos: Pierre beija tanto meninos quanto meninas e seu desejo de quebrar padrões de gênero (em especial, pela predileção em usar vestidos e maquiagem forte) claramente não opera nele um abandono do tesão por mulheres. O mais óbvio de se presumir (a transexualidade) também é deixado deliberadamente em aberto.

Se essas transformações já são suficientes para deixar qualquer menino de 17 anos louco, o filme propõe o seguinte: e se, no meio disso tudo, você descobrisse que tudo o que você entende por família foi baseado numa mentira? A investigação policial dá cabo do núcleo familiar de Pierre, com sua irmã Jaqueline (Lais Dias) também revelada como outra vítima de sequestro e Aracy, a criminosa, presa.

Pierre, então, se vê tendo que lidar e ter laços afetivos com uma família que não reconhece como sua, ao mesmo tempo em que tem que atender às expectativas dessas pessoas que passaram os últimos 17 anos de suas vidas ansiando por tê-lo novamente em seu convívio, expectativas essas que fazem os ânimos se exaltarem quando a desconstrução sexual do protagonista começa a vir à tona.

Da parte de Anna, é impressionante como seu controle de câmera e seu roteiro mantêm um clima de tensão desde a sequência em que o inspetor de polícia chega na casa de Pierre até o fim do longa. Pessoalmente, nunca pensei que pudesse me sentir tão incomodado por um filme sem o envolvimento do Lars von Trier ou do Michael Haneke, cineastas peritos em enfiar uma faca no coração da plateia e girá-la lentamente durante o tempo de projeção. Além disso, a seleção de elenco é fora de série, povoando toda a história com caras extremamente reais que aprofundam a sensação de que todo esse drama poderia acontecer no seu vizinho.

Desse elenco, Nero é uma descoberta certeira, tendo que exprimir toda a raiva e confusão de um personagem à beira de um colapso com poucas falas. Para mérito comparativo: pense se o personagem de Paul Dano, em “Pequena Miss Sunshine”, descobrisse que também gostava de homens. Já Nefussi rouba o show, interpretando tanto Aracy, a mulher que, por motivos dos quais nunca ficamos a par, feriu gravemente todas essas vidas, quanto Glória, a mãe de Pierre que teve o filho roubado e com quem ele não consegue se relacionar.

Os momentos ímpares são muitos, desde a quietude do beijo entre Pierre e seu colega de banda até o drama intenso do primeiro grande confronto do adolescente com Glória, que termina por prendê-lo em casa, num óbvio paralelo com as ações de sequestro. Outra briga, com Matheus, que desnuda o personagem de Nachtergaele de uma forma completamente diferente do mostrado até aquele momento, também fica na memória.

No final das contas, “Mãe Só Há Uma” vira uma análise de como ausências e rupturas, aparentemente sem explicação, deixam marcas nas vidas de pessoas comuns, e como nem os mais bruscos movimentos no mundo exterior são capazes de estancar completamente movimentos internos, uma vez que mesmo um jovem que descobre ter sido raptado e se muda para a casa de completos estranhos encontra em si a força para levar a cabo suas transformações pessoais.

Mãe Só Há Uma

Se, de fato, só há uma mãe, todo o resto é múltiplo.