Em Expresso do Amanhã, o diretor sul-coreano Bong Joon-ho nos mostra um mundo onde as mudanças climáticas estão prejudicando o planeta e a humanidade vive em conflito, se matando na eterna disputa entre aqueles que têm muito e aqueles que não têm nada. Ou seja, seu filme bem que poderia se passar no nosso presente. No entanto, ele se passa num futuro próximo e a humanidade está presa dentro de um enorme trem, perpetuamente correndo num trilho sem destino ou propósito à vista.

No início do filme, um letreiro nos informa que em 2014 a raça humana fez uma experiência com um gás na atmosfera para tentar impedir o aquecimento global. O resultado foi catastrófico e a superfície da Terra virou um deserto gelado. Dezessete anos depois, o que restou da humanidade está confinada no referido trem. Fora isso, a vida parece a mesma: nos vagões traseiros estão os pobres, com poucos recursos para sobreviver. Nos vagões da ponta vivem os mais abastados, com acesso à alimentação e a condições de vida melhores.

Entre eles está a força policial, que faz valer a vontade dos dirigentes do trem. Logo no início, essa força policial é responsável por nos apresentar ao herói do filme, Curtis (interpretado por Chris Evans). Quando os guardas mandam todos os habitantes do vagão traseiro a se ajoelharem para fazer a contagem das pessoas, Curtis fica de pé. Ele já está planejando há tempos uma revolta junto com seu amigo Edgar (Jamie Bell), e o plano envolve a libertação de um prisioneiro mantido confinado vários vagões à frente. Esse prisioneiro, Namgong Minsoo (Song Kang-ho), tem conhecimento dos sistemas de segurança do trem, e após a sua libertação tem início uma jornada até a “locomotiva sagrada”, pois, segundo Curtis, “todas as revoluções fracassam porque não alcançam a locomotiva”.

A cada novo vagão dessa jornada, os personagens têm uma surpresa e o espectador também. Baseado numa graphic novel francesa, o filme tem um apuro visual e uma energia poderosas, similares à de vários exemplares do cinema coreano. Bong Joon-ho, aqui no seu primeiro filme em língua inglesa, faz um filme parte distopia no estilo Terry Gilliam – não à toa, um dos personagens se chama Gilliam, aquele interpretado pelo veterano John Hurt – e parte longa de ação. Algumas cenas de ação, pela própria “horizontalidade” do cenário, por assim dizer, lembram a cena da luta no corredor em Oldboy (2003) de Park Chan-wook, que não por acaso, é um dos produtores deste longa. Bong Joon-ho encena lutas claustrofóbicas, com facas e machados, e que parecem desesperadas e sem coordenação, deixando todo o filme com uma energia e um suspense palpável – e um momento envolvendo um garotinho carregando uma tocha é inesquecível e deixa o espectador vibrando.

snowpiercer o expresso do amanhã chris evansMas Expresso do Amanhã não tem apenas ação. Há também grandes atores dando vida à inteligente crítica social do filme. Afinal, é difícil ver o filme e não perceber os paralelos com a situação mundial. No trem, as pessoas são condenadas a viver em condições terríveis e se alimentando com umas barras de proteínas escuras e com um aspecto bem nojento. Algumas crianças dos últimos vagões também são periodicamente levadas pelos guardas, e ninguém sabe que fim lhes é dado. De fato, em alguns momentos o cenário do trem evoca lembranças do transporte dos judeus para os campos de concentração nazista, que também era realizado via ferroviária.

No começo do filme os cenários são escuros e monocromáticos, assim como os figurinos usados pelos personagens. O ambiente desprovido de cor e de qualquer esperança acaba se iluminando cada vez mais à medida que a revolta liderada por Curtis avança de vagão em vagão, e o longa fica mais colorido – o vagão-aquário e o ambiente escolar são grandes acertos da direção de arte, que também insere detalhes curiosos aqui e ali, como o cabo de guarda-chuva que substitui a mão cortada do personagem de John Hurt. E os efeitos do filme não são menos que excelentes: as visões da paisagem do mundo gelado são de tirar o fôlego, assim como as cenas do trem atravessando paredes de gelo.

Em meio à esse cenário, de vez em quando surge a porta-voz da classe dominante, a estranha senhora Mason (Tilda Swinton, na atuação mais bizarra da sua carreira, e isso quer dizer muito). A senhora Mason quer que todos “saibam da sua posição” e se contentem com ela, mas mudanças são inevitáveis na verdadeira panela de pressão que é aquele ambiente, composto por pessoas de diferentes povos e etnias. Jamie Bell fala com um estranho sotaque, Kang-ho e sua filha são coreanos – ambos os atores trabalharam com Bong Joon-ho em O Hospedeiro (2006), o filme de monstro que fez o nome do cineasta – e Octavia Spencer é a mulher negra em busca do filho numa atuação repleta de força. Além disso, Evans tem carisma para conduzir a história e tem um monólogo sobre a sua vida no trem que representa um dos pontos altos da carreira do ator.

A vida no trem, sem dúvida, é dura, mas o final da jornada introduz interessantes noções à esta alegoria da luta de classes. Na locomotiva, o símbolo de um círculo cortado por um “s” é visto, remetendo ao símbolo do Yin/Yang e indicando uma natureza simbiótica entre as duas classes. O criador do trem – interpretado por Ed Harris, trazendo de volta ecos do seu personagem Christof de O Show de Truman (1998) – introduz conceitos quase darwinistas ao dilema ocorrido no trem, e neste momento podem-se fazer paralelos entre o filme e a trilogia Matrix. Como o herói Neo da trilogia, Curtis descobre fatos sobre a natureza do seu mundo e sobre o jogo “de cartas marcadas” que é a sua luta por revolução.

Expresso do Amanhã é uma viagem louca na qual nem todas as coisas fazem sentido de um ponto de vista realista – o assassino estilo Exterminador é um exagero – mas são a urgência do movimento e a força da sua visão que contam para fazer dele um filme único. O trem de Bong Joon-ho é movido pelo conflito e pela raiva que parecem ser inerentes ao progresso histórico da raça humana. Porém, dentro da sua loucura Expresso do Amanhã termina apontando um novo caminho. Para onde ele leva o filme não explica, mas afinal de contas as pessoas no trem do planeta Terra, onde vivemos, também não sabem para onde ele está indo nem se um dia chegará a algum lugar.