Transpor, ou mesmo abordar, a paixão pela atividade da escrita não é uma tarefa exatamente simples de se realizar no cinema. Grandes paixões, super-heróis no espaço ou carros explodidos por agentes secretos são itens muito mais simples de se expor em nível visual em relação ao trabalho intelectual de um escritor. Não que estejamos colocando na balança o valor deste último em nível superior aos demais – se fosse assim tão simples, qualquer cinebiografia sobre escritores seria uma obra-prima, não?

A questão é mais sutil: como mostrar a devoção a uma atividade que acontece majoritariamente na cabeça (e nos dedos) de um artista de maneira a parecer relevante para quem está de fora – no caso, o espectador?

Ainda que “Poderia me perdoar?” não seja sobre a produção de uma obra em si, a cinebiografia da escritora Lee Israel (Melissa McCarthy) abraça o desafio. A diretora, Marielle Heller, explora a paixão pelo ofício utilizando uma estratégia que já podermos chamar de batida: ao invés de contar o início-meio-fim da vida da protagonista, seleciona-se um recorte específico da mesma. Foi assim em “Jackie” (idem, Pablo Larrain, 2017), “O discurso do rei” (The King’s speech, Tom Hooper, 2011), “Capote” (idem, Bennett Miller, 2016)… No entanto, o caráter inusitado do recorte temporal da vida de Israel e a direção de atores fazem essa escolha de Heller parecer mais ousada e interessante.

Explica-se: o filme se debruça não ao momento de sucesso da carreira de biógrafa que Lee instituiu, mas a um ponto bem baixo da mesma. Após ser uma autora best-seller, a escritora passa por dificuldades pessoais e financeiras, sem perspectiva de melhoras à vista. Com as dívidas se acumulando, tem a ideia de vender cartas de grandes artistas para colecionadores a preços bons o suficiente para pagar as contas do mês.

O único porém é que as cartas são falsas, datilografadas e envelhecidas pela própria Lee. Ela absorve a personalidade e estilo de escrita dos “autores” para melhor enganar os compradores – ou, como ela mesma define em determinada altura do filme, ser mais eles que eles mesmos. E assim, os compradores das cartas são agraciados com verdadeiras “pílulas de sabedoria” de artistas como Dorothy Parker, Ernest Hemingway, Noël Coward, Edna Ferber, dentre (muitos) outros.

O que um artista pode fazer?

A abordagem de Heller para esse episódio da vida de Lee vai muito além da tragicômica produção e venda das cartas. Para além da superfície do texto fílmico, a paixão pela pesquisa e ofício da escrita (ainda que de itens “controversos”) borbulham no roteiro de Nicole Holofcener e Jeff Whitty. Para Lee, o crime compensa não só por conseguir pagar o aluguel ou levar a amada gata ao veterinário, mas porque a conexão com os autores cuja escrita falsifica a faz enxergar as cartas como parte de sua obra, numa analogia ao seu trabalho com biografias.

Mais que isso, “Poderia me perdoar?” pincela reflexões sobre como um escritor pode ter, nesse ofício, sua única real conexão com o mundo e consigo mesmo. Lee despreza a possibilidade de um emprego comum, com ponto e horário de entrada e saída, porque abraça, contra todos os prognósticos, seu verdadeiro chamado, ainda que isso lhe custe caro. Quantas pessoas podem dizer que tem a coragem de fazer o mesmo? Aí mora o valor da personagem, por mais patética que sua vida pareça à primeira vista.

É esse último ponto que torna a atuação de Melissa McCarthy tão preciosa – e digna de concorrer ao Oscar de Melhor Atriz em 2019. Sua Lee é uma senhora mal-humorada e de língua afiada sem que isso descambe para o escracho; é dura e desconfiada com todos, mas expressa, ao mesmo tempo, uma fragilidade de, no fim das contas, importar-se mais em produzir algo de qualidade e menos com o próprio bem-estar; afinal de contas, sua agente a aconselha a escrever uma literatura na qual ela não desapareça no meio do objeto retratado. A postura de Lee é, no fim das contas, humilde, tímida, focada no valor do que ela produz e não em seu próprio valor. Um pesadelo para as vendas, resumindo, e justamente o que a coloca em apuros.

A caracterização de Lee também poderia dificultar a construção da empatia do público para com ela, mas isso não acontece devido a outro ingrediente: a presença de Richard E. Grant como Jack Hock, o amigo e nada fiel escudeiro de Lee. Expansivo e dúbio, ele forma com Lee uma dupla de outsiders e, eventualmente, a ajuda com as vendas das falsificações até tudo dar inevitavelmente errado. Em comum, ambos têm a dificuldade de se encaixar às expectativas da sociedade: ele, por ser um vigarista convicto; ela, por não saber (ou se negar) a ser um produto rentável no mercado editorial.

Grant é magnético a cada vez que surge em cena trazendo a amoralidade e charme irresistíveis de Hock. Tal como McCarthy, não se entrega a soluções cômicas fáceis para sublimar o caráter levemente trágico de seu personagem, o que humaniza o duo e torna emotiva a dinâmica entre eles.

O que diz, e não como

Esses elementos fazem com que “Poderia me perdoar?” seja o tipo de filme sobre o qual temos mais vontade de destrinchar a narrativa e suas leituras possíveis e menos seus aspectos técnicos. Não que estes últimos sejam falhos ou indignos de nota: por exemplo, a recriação dos anos 1990 funciona organicamente, e Heller aproveita novamente a parceria com o diretor de fotografia Brandon Trost, com quem trabalhou em “O diário de uma adolescente” (Diary of a teenage girl, 2015), para criar uma atmosfera de época. Mas esse e outros elementos de construção fílmica saltam menos aos olhos que as emoções suscitadas pelo roteiro e direção.

“Poderia me perdoar?” não chega no nível de “Adaptação” (Adaptation, Spike Jonze, 2002), “Paterson” (idem, Jim Jarmusch, 2016) ou “Barton Fink – Delírios de Hollywood” (Barton Fink, Joel e Ethan Coen, 1991). Porém, garante a Marielle Heller passar ilesa da maldição do segundo filme – aquela de quando um estreante tem seu primeiro filme elogiado para, logo em seguida, fazer um fracasso de público e crítica.

Se fosse possível colocá-lo num hall de filmes sobre escritores, “Poderia me perdoar?” provavelmente figuraria num cômodo próximo a “Um anjo em minha mesa” (An angel at my table, Jane Campion, 1990) e “Anti-herói americano” (American splendor, Robert Pulcini e Shari Springer Berman, 2003); o primeiro, por trazer uma mulher luta para tomar conta de sua própria narrativa e produção literária; e o segundo, pelo humor tanto cáustico quanto sensível. É uma posição deveras satisfatória.