No contexto do cinema blockbuster atual, muito se discute sobre as transposições necessárias para de adaptar um produto de uma mídia para outra, como por exemplo, das histórias em quadrinhos para um filme. A questão-chave, regra geral, é como fazer com que o meio audiovisual influencie no impacto da mensagem de maneira a gerar o mesmo nível de envolvimento que os quadrinhos ou um livro geraram anteriormente no público. Resumindo: como traduzir para um código processos que pertencem a outro?

“Paterson” (idem, 2016), de Jim Jarmusch, não é uma adaptação de livro ou HQ, mas ele curiosamente lida em sua construção com uma situação análoga: como traduzir visualmente os processos mentais e estados de espírito que levam à criação artística, mais especificamente, à escrita literária?

Muitos são os filmes que já flertaram com a tentativa de representar esse momento: Woody Allen retratou bloqueios criativos cômicos em “Meia-noite em Paris (Midnight in Paris, 2011) ou Desconstruindo Harry (Desconstructing Harry, 1997); “Adaptação” (Adaptation, 2002) mostra o processo e torna fluidas as diegeses envolvidas na adaptação literária; “Barton Fink – delírios de Hollywood” (Barton Fink, 1991) tem os irmãos Coen tem uma das representações de um roteirista mais icônica do cinema; “Medo e delírio em Las Vegas” (Fear and Loathing in Las Vegas, 1998) traz o frenesi da escrita impulsionada por drogas alucinógenas… Enfim, exemplos não faltam quando o assunto é representar a escrita de prosa, textos jornalísticos e roteiros. Em comum, filmes como os citados têm a expressão do “tesão” do artista por aquilo que faz, seja escrevendo em si ou buscando como voltar a escrever.

Quando se trata de escrita de poesia, no entanto, essa intensidade na relação escritor-obra não possui representações tão marcantes. Claro, sempre haverá a beleza melancólica e jovial de “Sociedade dos poetas mortos” (Dead poets society, 1989), mas quando nos lembramos de filmes como “Sylvia: paixão além das palavras” (Sylvia, 2003), “O círculo do vício” (Mrs. Parker and the Vicious Circle, 1994) e mesmo “O livro de cabeceira” (The pillow book, 1996), de Peter Greenway, o tal “tesão” na escrita fica menos latente ao espectador, mesmo porque os processos envolvidos na escrita poética são diversos à sistematização da prosa. “Paterson” vem, nesse sentido, contribuir como uma tentativa bem sucedida de traduzir o que se passa na mente do escritor de versos livres.

Cinepoesia

Comprar a proposta de “Paterson” é, primeiramente, comprometer-se com a poesia que o filme serve, escrita por seu personagem-título, um motorista de ônibus interpretado sensivelmente por Adam Driver, e que vive numa cidade que tem o mesmo nome que ele. Como um filme no qual nada de muito marcante acontece na trama (temos Paterson escrevendo, dirigindo, vivendo um dia atípico com um problema elétrico no ônibus, dando um pulo no cinema com a esposa, dentre outras amenidades), os poemas de Paterson também atentam aos detalhes cotidianos, como os pensamentos invocados a partir da observância a uma caixa de fósforos, por exemplo.

A vida interna em meio a essas amenidades é o coração de “Paterson”. Não por acaso, a imagem do fluxo das águas de uma cachoeira adentra o fluxo de palavras que Paterson monta silenciosamente nos intervalos da rota, anotando tudo num caderno secreto. Assim, tal imagem não é apenas um recurso visual que casa de maneira quase convencional ao texto escrito, que se forma na tela, e ao texto falado, que ouvimos em off; é também uma metáfora do surgimento dos poemas no momento de inspiração.

Aliás, o que poderia ser uma metáfora um tanto fraca ganha contornos mais profundos quando se liga a uma cena crucial. Nela, Paterson vai a um parque e observa justamente uma cachoeira, enquanto tem uma conversa reveladora com um poeta japonês (Masatoshi Nagase). Este, que veio à Paterson para conhecer a cidade de outro poeta, William Carlos Williams, afirma que seus livros não têm tradução para o inglês, uma vez que transpor um poema para outra língua é uma tarefa indigna, pois nunca se consegue totalmente dizer o que se disse na língua original; da mesma maneira, traduzir poesia em filme não é fácil, mas “Paterson” faz um excelente trabalho nesse departamento.

Outra jogada inteligente de Paterson é o uso dos poemas reais do escritor Ron Padgett, alguns escritos especialmente para o longa. Eles guiam a atmosfera minimalista pretendida pelo filme (e marca do cinema de Jarmusch) com perfeição, dando uma conexão fantástica entre a literatura ali apresentada e a estética que o diretor idealizou.

O uso de rimas visuais, por exemplo, é estruturado de maneira original, pois vemos ao longo do filme a figura de irmãos gêmeos ou da cachoeira supracitada repetindo-se varias vezes; no entanto, tal como os padrões de fonemas que um poema cria, isso não necessariamente tem um significado especial: o simples ato de perceber e sentir essas imagens/fonemas pode ser o único objetivo.

É um uso diferente do que vemos em filmes como “Oldboy” (Oldeuboi, 2003), de Park Chan-Wook, no qual concluímos ao final que as rimas visuais explicam muito da trama, além de reforçarem elementos referentes ao determinismo que marca as ações dos personagens e à ironia presente no roteiro. Mais distante ainda é o uso dessa estratégia em “Paterson” quando comparamos às rimas visuais redundantes de um “A qualquer custo” (Hell or high water, 2016), no qual se traçam paralelos pouco convincentes entre mocinhos e vilões para passar uma mensagem que meia dúzia de falas não muito bem colocadas já sumarizaram no roteiro.

A sobriedade da paleta de cores terrosas ou azuladas de “Paterson” é quebrada apenas quando o diretor vira sua câmera para Laura (a iraniana Golshifteh Farahani), esposa do protagonista. A intensidade, beleza e doçura dela dialogam com os versos de Paterson, sendo esses (o amor e a poesia) os dois elementos que dão vida a sua rotina. Talvez por isso algo que marque a paleta de cores do cotidiano de Laura seja justamente o preto e branco, o qual podemos relacionar ao branco do papel entrecortado pelo preto do traçado do lápis; ao mesmo tempo, o gosto por padronagens (nas cortinas, no violão ou nas roupas) evocam mais uma vez a presença de elementos que combinam e “rimam” no filme, representando visualmente processos pertencentes à literatura e ao processo de escrita.

Não obstante, o caráter singelo dos pólos amor-escrita ressoa ainda em outra inspiração direta no filme: a pegada dos poemas do escritor William Carlos Williams, que escreveu uma série de cinco livros chamada (advinha?) “Paterson”. Tal como nosso herói do longa, Williams olhou para o que havia de mais fantástico no cotidiano, tendo passado a vida na pequena cidade que dá nome ao personagem de Driver e ao filme. Reforçando a atenção aos pequenos detalhes do dia a dia, entra nessa mesma unidade temática um pequeno alívio cômico: a presença do bulldog Marvin como o maior “antagonista” de Paterson.

A cereja do bolo (olha o clichê descritivo aí!) de “Paterson” é, sem dúvida, a atuação ímpar de Adam Driver como o personagem-título. Após tantos papeis nos quais ele abusava de sua estatura enorme para interpretar tipos expansivos (o Adam Slacker da série “Girls”, o vilão Kylo Ren em “Star Wars: O despertar da força”, o hipster Jamie em “Enquanto somos jovens” etc.), Driver finalmente foi presenteado com um personagem no qual pôde mostrar uma faceta mais diversa e delicada como ator. Nesse sentido, “Paterson” confirma o potencial que Driver já tinha mostrado em “Hungry Hearts” (idem, 2014) e reforçado posteriormente em “Silêncio” (Silence, 2016): esse homem ainda há de ganhar um Oscar, ou, pelo menos, concorrer a um.

“Paterson” é conciso como um poema cujos excessos de adjetivos foram cuidadosamente cortados pelo autor; e ainda assim, a melhor maneira de sumarizar a experiência de vê-lo é adjetivando-o como enigmático ou fantasmagórico. Para além dos belos poemas que o filme traz, a maneira como Jarmusch usa a linguagem cinematográfica como um jogo à exemplo da literatura coloca esse como um dos filmes mais interessantes sobre o ato de escrever, e um dos mais adoráveis na filmografia do diretor.