Não é de hoje que Lucia Murat aborda no seu cinema, a forte presença feminina frente a contextos e problemas sociais políticos. Que Bom Te Ver Viva (1989) e Memórias que Não me Contam (2012) tratam da repressão da ditadura militar, enquanto Doces Poderes, (1997), a política é discutida através do olhar feminino. Se estes trabalhos apresentam a dura realidade social, também são carregados com um viés memorialista, de recordações e traços poéticos.

Praça Paris, seu novo trabalho, vencedor de melhor filme de 2017 no Festival do Rio, representa um salto maior na sua carreira até então sólida: um filme mais maduro, denso e urgente como realizadora, que reflete assustadoramente a realidade contemporânea que o país atravessa. Murat coloca duas mulheres frente a frente, separadas por mundos totalmente distintos.

De um lado, Glória (a revelação Grace Passô), moradora do Morro, que trabalha como ascensorista na UERJ e do outro Camila (Joana de Verona), uma psicanalista portuguesa que está no Rio para realizar sua pesquisa de campo sobre violência urbana. Acaba que Gloria vira paciente de Camila e através das sessões de terapia relata suas experiências (emocionais e sociais) da realidade do morro, marcadas por abusos do pai, a relação simbiótica com o irmão chefe do tráfico e a série de assassinatos que presenciou. Um vínculo entre elas se estabelece e a relação ultrapassa os limites do consultório, principalmente quando Camila precisa enfrentar uma realidade que desconhece.

Praça Paris gera um grande impacto no público por ser o retrato fiel de como a violência urbana das grandes metrópoles propaga a paranoia irracional e incontrolável no ser humano, um vírus que devora a razão, criando comportamentos reativos como o preconceito, medo e a insegurança, levando a pessoa se tornar uma vítima indireta da violência. E mais assustador que isso, é observar que o filme reflete sobretudo, a situação que vive hoje, o Rio de Janeiro. A violência que afeta as ações de Camila e Glória, traz recordações do recente assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, uma lembrança trágica e mórbida, afinal o filme de Murat foi realizado antes dos acontecimentos, mas que serve como presságio para a hostilidade que assola não apenas o estado do Rio, como o restante do país.

É interessante como Murat desenvolve sua ideia da necessidade de superar traumas do passado para assimilar o presente e assim encarar o futuro, a partir dos contextos da subjetividade humana e das dicotomias sociais. Quando as duas personagens discutem de forma gradual nas sessões suas experiências e expõem seus sentimentos, é notório que o filme ganha uma ótima dimensão por expor o enorme abismo social entre elas. Enquanto, uma é a brasileira que mora na favela, conhece o dia a dia do local, e vive a violência na pele desde os 10 anos de vida – sofreu abuso sexual do próprio pai – a outra é descendente portuguesa, que nunca passou por isso e que se vê diante de códigos culturais e situações sociais que desconhece.

São mulheres de classes diferentes, que não estão preparadas para lidar com as emoções daquilo que terão que enfrentar, limitadas mais por si mesmas do que pelos outros. O texto neste aspecto é hábil de revelar sutilmente ao público que mesmos em pontos diferentes de suas vidas, Glória e Camila precisam uma da outra para crescerem, afinal a empatia é uma ferramenta crucial na relação entre elas – curiosamente este é o tema da dissertação de Camila-, contudo, as desigualdades sociais entre elas, não permitirão que este afeto mútuo seja compartilhado, afinal são duas mulheres moldadas pelo medo, que oferecem só têm para oferecer uma para outra, o preconceito e a violência. Para lidar com os fatos e seus desdobramentos é preciso primeiro aceitá-los para que eles deixem de ser uma negação recorrente em nossas vidas. Esta é uma das grandes mensagens da produção.

Neste ponto, Murat mostra o seu pleno domínio no uso de signos. As cenas que abrem e fecham o longa com Camila, reproduzem visualmente o abismo profundo que ela vive em comparação a Glória. São cenas que acontecem em um mesmo cenário, mas com representações (e metáforas) diferentes. Isso também ganha força no aspecto audiovisual, à medida que a cineasta diminui a distância entre elas. É só reparar como os planos de Gloria começam fechados, quase claustrofóbicos, mas à medida que ela vai se libertando dos seus “fantasmas emocionais” do passado, eles se tornam abertos. O inverso ocorre com Camila, que é mostrada no início através de planos contemplativos e plastificados, que transmitem sensações de liberdade junto ao namorado, que logo são substituídos, quando o espiral do medo irracional se apodera da sua conduta, e o que se observa em tela é a personagem totalmente sufocada nos enquadramentos, transmitindo sua angústia ao público – elemento que ressoa forte na trilha sonora intimista que utiliza sons de respiração para acentuar a gravidade das sensações emocionais da personagem.

Curioso é também observar, o quanto o filme vai se tornando assustador durante sua progressão. Murat faz este desenho social feminino de situações desafiadoras como preconceito e violência feminina através de camadas tensas, que valorizam um olhar abrangente sobre o tema, com uma inquietação digna dos filmes de Michael Haneke, um cinema que ao mesmo tempo que nos faz refletir, também nos provoca. Talvez desde Som ao Redor de Kleber Mendonça, uma produção nacional não foi tão certeira na sua crítica social.

Por isso, é uma pena quando o filme abraça o thriller psicológico social, Murat estruture fragilmente o confronto entre suas duas protagonistas. Se Gloria é sempre uma personagem complexa aos olhos do público, que se torna cada vez fascinado pela sua ambiguidade frente suas ações no decorrer da trama, a jovem Camila se torna uma caricatura. O roteiro de Murat cai na armadilha de ser tendencioso principalmente na caracterização da “psicóloga/mulher/branca” como uma representação da elite alienada. Nada contra, afinal há muitos assim na sociedade e nas redes virtuais. O problema é como o roteiro a reduz em momentos dramáticos dentro de ações fúteis, sem uma justificativa plausível para assimilarmos ou entendermos seu comportamento. No momento que a tensão entre as personagens cresce, falta empatia para que o público compreenda Camila e que evidencia um desenvolvimento problemático dela pelo texto.

A impressão é que Murat se rende a visão traiçoeira desta “guerra social”, deixando seu filme refém da excessiva idealização do arquétipo ideológico. É uma visão crítica, reducionista e estereotipada, que recai a diálogos moralistas e algumas escolhas óbvias como elevador que enguiça em um momento adequado de tensão, o celular esquecido que irá passar informações importantes de uma personagem para outra, sem contar a facilidade de como você pode ter acesso ao apartamento de um estranho. Com isso Grace Passô, domina a tela com sua expressividade que fascina pelo sacarmos saboroso (nem parece o primeiro trabalho de destaque da atriz frente a maturidade e autoridade que impõe a Glória), engolindo nos principais momentos dramáticos Joana de Verona, que sofre pela limitação de sua psicóloga, pelo texto.

Mesmo com esse pequeno “atropelo” do roteiro, Praça Paris é um complexo retrato social sobre o processo da violência social no cotidiano das pessoas. Uma obra relevante pela proposta de discutir elementos atuais no escopo fílmico e que é um espelho assustador da paranoia social que assola o Brasil hoje e o quanto a escala do medo, estabelecido pela violência, destrói os códigos éticos e humanidade das pessoas.

Assim como a fala incisiva de Graça para Camila em certa sessão terapêutica “você me enxerga como um bicho de zoológico”, Murat através do seu filme, materializa um grande espelho para enxergamos o quanto contribuímos neste processo de marginalização do “pobre favelado” e se lá no fundo do nosso âmago, saímos da nossa zona de conforto e resgatamos nossa empatia pelo coletivo.