Nem mesmo o fato de ser o “filme de terror da Sandy” foi o suficiente para que os cinemas de Manaus reservassem uma sala sequer para Quando Eu Era Vivo. O que é uma pena, visto que em um contexto de produção nacional (em larga escala e “mais comercial”, vale apontar) cada vez mais marcado pelas inúmeras comédias da Globo Filmes e um ou outro título de drama, o longa de Marco Dutra é uma experiência arriscada no gênero do terror. E colocar Sandy como uma das cabeças de seu elenco é apenas uma das ousadias do diretor.

A cantora, na verdade, é apenas a coadjuvante de uma história maior, baseada no livro A Arte de Produzir Efeito Sem Causa, de Lourenço Mutarelli. Júnior (Marat Descartes), recém-divorciado e sem emprego, retorna ao apartamento da família para viver por um tempo com o pai (Antônio Fagundes) em São Paulo. O lugar agora também conta com a presença da inquilina Bruna (Sandy Leah), uma estudante de música que ocupa o quarto que antes era dele. Sem dinheiro nem perspectiva, Júnior passa os dias no tédio do apartamento, até que aos poucos vai desencadeando lembranças de um passado familiar não muito agradável.

Em Quando Eu Era Vivo, o que interessa ao diretor é mais sugerir do que efetivamente mostrar. Trata-se de um universo em que há sempre algo a mais por trás da aparente normalidade dos ambientes e situações. Aí reside um dos maiores méritos do filme: em vez de promover sustos a cada frame, Dutra investe na construção detalhada da atmosfera de fragilidade e de terror crescente, sem nunca ter que recorrer a sangue jorrando ou criaturas demoníacas supergráficas – embora algumas aparições discretas do Fofão preencham a cota do boneco assustador e ajudem a sustentar a minha crença de que ele sempre teve uma cara meio satânica. De qualquer forma, com ou sem Fofão, é nessa sutileza que o filme carrega seu tom de horror, e com sucesso.

Essa sensação começa desde o momento em que Júnior chega ao apartamento, e seus olhos procuram e investigam constantemente algo além da decoração brega, embora tudo pareça estar em seu devido lugar. Dutra utiliza de todos os elementos ao seu dispor para mostrar a desconstrução daquela história e seus personagens. O apartamento iluminado vai ficando cada vez mais escuro e claustrofóbico, graças ao excelente trabalho de fotografia de Ivo Lopes Araújo. Não é à toa que a própria Sandy (opa, Bruna) percebe isso a certa altura. Já o design de som, tão bom quanto em O Som ao Redor, mistura passado e presente e sons que não se sabe de onde vêm.

O som, aliás, não é a única coisa que Quando Eu Era Vivo guarda em comum com O Som ao Redor. Apesar do gênero completamente diferente, assim como Kleber Mendonça Filho, Marco Dutra tem uma preocupação em tocar em temas ligados a uma classe média brasileira sobretudo complexa. A ambientação do apartamento revela móveis de décadas atrás misturados com aparelhos modernos de ginástica, em novos tempos de cultura saudável. O pai vivido por Antônio Fagundes, despido de qualquer vaidade de galã de novela das nove, tenta incorporar esse novo estilo de vida e manter a juventude nos cabelos aparentemente pintados. O filho, na decadência de quem parece ter perdido tudo, se vê obrigado a voltar para a casa da família, submetendo currículos para empregos que ele não tem realmente o menor interesse em conseguir. Mais que o terror do sobrenatural dentro daquela história, Dutra mostra o próprio horror da decadente estrutura familiar que se desvela ao longo do filme. O passado se impõe e retrata o atual distanciamento entre pai e filho por conta do fim traumático de um núcleo familiar tradicional. Ocultismos à parte, é justamente a busca pelo resgate desse laço que move as ações de Júnior.

Tudo isso é acentuado pela linguagem arrojada utilizada pela direção de Dutra. Se por um lado ele recorre a flashbacks por meio de fitas VHS, no estilo found footage de filmes como Atividade Paranormal, por outro, ele as encadeia com referências que vão desde Hitchcock até mesmo ao expressionismo alemão. A sequência em que a manicure sensitiva vivida por Gilda Nomacce protagoniza uma espécie de “exorcismo” é um bom exemplo, enquadrando a atriz em ângulos que revelam sua imponência e, ao mesmo tempo, fragilidade diante de forças ocultas expressas no simples movimento de cortinas e janelas, dialogando com o mais clássico do cinema de terror.

Relevando os exageros de interpretação de Marat Descartes, que, em busca de retratar o desequilíbrio do protagonista, às vezes acaba fazendo uma caricatura de Jack Nicholson em O Iluminado, todos os atores passam por esse processo de desconstrução também com seus personagens, embarcando na obscuridade da narrativa. Fagundes, especialmente, entrega uma atuação repleta de detalhes que em nada lembram seu trabalho em novelas. E até mesmo Sandy, cujo currículo prévio não impressiona no quesito atuações (embora eu confesse que, quando criança, acompanhava o seriado dela com o irmão na Globo e provavelmente fui uma das únicas pessoas no universo que aturou Estrela-Guia até o final), faz um bom trabalho.

Em sua essência, Quando Eu Era Vivo mostra como uma coisa bonita foi destruída e envolta em sombras. E a personagem bela, doce e aparentemente ingênua de Sandy é curiosamente a que mergulha com mais facilidade nesse universo de demônios, sejam eles familiares ou não. Como se não bastasse ser um corajoso exemplar de filme de terror independente, estética e tecnicamente bem resolvido, o longa de Marco Dutra já mereceria um pinguinho de atenção só por colocar a cantora pop, que vimos crescer, cantando para o capeta.