Das funções mais importantes que a crítica deve desempenhar, acredito eu, está o fato dela não cumprir papel reacionário. Acredito ser necessário estabelecer critérios técnicos rigorosos que a obra deva cumprir, a sua maneira, para ser considerada arte, mas, ao mesmo tempo, creio que o olhar de quem analisa precisa estar aberto para novas ideias, paradigmas, convenções que se alteram com o passar do tempo.

Se isso vale para os critérios mais técnicos da linguagem, vale também para seus temas e abordagem. Há muitos exemplos de obras geniais tecnicamente, mas falhas em seus discursos e posicionamentos políticos. Artistas (os bons de verdade) podem até ter um olhar diferenciado sobre o cotidiano, mas, ao mesmo tempo, são cidadãos como todo mundo, logo precisam responder pelos assuntos que trazem à tona, não podem eximir-se dessa responsabilidade.

Também há o inverso: obras que não necessariamente provocam entusiasmo por sua realização técnica, mas que são contundentes e relevantes na maneira como trazem para a baila assuntos urgentes do nosso cotidiano. Mais recentemente obras abertamente posicionadas tematicamente vêm ganhando notoriedade. Quando também estão acompanhadas do domínio dos critérios técnicos da realização de um filme, cumprem papel amplamente positivo no desenvolvimento da linguagem.

Se a Rua Beale Falasse, até por conta da adaptação do livro homônimo de James Baldwin lançado em 1974, está mais interessado em colocar pra fora as verdades entaladas do que ser um filme excepcional, mesmo claramente sendo uma produção realizada com perícia técnica.

As denúncias aos diversos casos mais e menos óbvios de racismo, que podem ser contextualizados para 2019 a partir da história de décadas atrás, são o que o filme tem a dizer. E o longa de Barry Jenkins é muito coerente no que questiona, tem a fúria e intensidade necessárias. Mas me pergunto: de que maneira a direção utilizou essa energia para concretizar isso em planos, som, montagem que extrapolem o tema? Afinal, um bom tema não se concretiza automaticamente numa construção audiovisual satisfatória.

O filme conta a história do casal Tish (KiKi Layne) e Fonny (Stephan James), que mora no Harlem com dificuldades ainda maiores que o comum por conta do racismo. Pouco antes de descobrir que terão um filho, o casal é separado devido a uma falsa denúncia envolvendo Fonny e uma mulher porto-riquenha, o que o faz ser preso. Enfrentando muitas adversidades por conta de um sistema discriminatório, Tish e sua família vão em busca de encontrar maneiras para evitar uma prisão injusta.

Não que Jenkins tenha mostrado ser um diretor inovador com Moonlight, mas chama a atenção o quanto Beale é convencional de estrutura, construção visual, ritmo. É um filme demasiadamente falado, conversado, aparentemente valendo-se do álibi de ser focado no drama humano dos personagens. Torna-se repetitivo, mesmo que o que esteja sendo dito necessite ser ouvido.

Como todos os personagens ali tem muito o que falar (e tem mesmo), isso surge como “o” mais importante. Mas acaba resultando numa narrativa que avança sempre muito devagar, secundária ao discurso. A decupagem aqui e ali até tenta apresentar soluções para tornar o filme mais atraente (os planos frontais de Trish e Fonny no parlatório), mas de modo geral, Jenkins não é capaz de criar sequências marcantes através de ações, formas, texturas, efeitos de montagem, pois o foco se recai sempre no texto.

Se o discurso mais direto e educativo cumpre papel positivo na ótima participação do personagem de Brian Tyree Henry – que funciona como uma espécie de prenúncio do que Fonny teria pela frente – em outros momentos acaba fragilizando o filme, como na cena com o personagem de Dave Franco.

Jenkins também assumiu um estilo mais melodramático na direção de atores, que pode até combinar com toda a fúria que envolve a temática, mas que certamente se mostra falível. O encontro entre as duas famílias, no primeiro ato, é um exemplo da mão que se mostra pesada na condução do drama, que coloca tintas fortes demais nas discordâncias, principalmente com a mãe de Fonny.

É compreensível a maneira dura com a qual os personagens brancos são mostrados, afinal o filme é contado por negros, uma negra, que não possui nenhuma razão para oferecer (de novo e de novo) a outra face. Mas seria necessário ilustrar isso através do estereótipo do policial branco que faz careta para ser ainda mais desprezível? Não sei a resposta, é uma pergunta sincera.

Fruitvale Station, de Ryan Coogler, possui dispositivos semelhantes na sua história, mas alcança resultado bastante mais complexo por não pintar a história com tintas fortes demais. Mesmo que os filmes possuam propostas diferentes, creio que vale a reflexão.

Também não vejo como algo bem resolvida a narração em off acompanhada do questionável uso da câmera lenta, e escolha de planos que ilustram o que o texto diz, como na sequência dos chutes do bebê na barriga da mãe. Parece uma outra versão do filme que não confia no público e explicita desajeitadamente todas as suas intenções o tempo todo.

O filme cresce mais perto do fim, quando o racismo se mistura a questão da imigração, que acaba trazendo pontos de vista mais variados ao filme. Ao mesmo tempo, nada que justifique a indicação de Regina King ao Oscar (se é que isso é algo que devemos levar tão a sério). Trata-se de um filme de boas atuações em geral, e entendo que King pode ter sido escolhida como uma espécie de representante do elenco, mas acredito ser uma inversão na ordem das coisas. Entendo, mas não concordo.

Parece-me muito claro que Se a Rua Beale Falasse está do lado certo da história, e que é um daqueles trabalhos em que as concordâncias são mais importantes do que as discordâncias. Só penso que como filme, obra audiovisual que aparece no retângulo do monitor, era possível ser muito mais que isso.

Mas se fizer as pessoas pensarem a respeito do tema com outro viés, já cumpre o papel que propôs. E isso está muito longe de ser pouco.