Billy Wilder costumava dizer que o diretor de cinema deveria ser “um policial, uma esposa, um psicanalista, um bajulador e um filho da mãe”. Talvez por isso, seu olhar perspicaz – de alguém que se coloca em vários papeis ao mesmo tempo – sempre estivesse em sintonia com a sua escrita para criar tipos memoráveis e situações desconcertantes. Foi assim com a agonia de “Farrapo Humano”, com “A Montanha dos Sete Abutres” – quando mostrou o pior da natureza humana em uma história que se vê todo o dia na televisão até hoje -, com “Crepúsculo dos Deuses” e a decadência que não é enxergada como deveria e com “Quanto Mais Quente Melhor” e o seu jogo de gato e rato para sobreviver. Isso só para citar alguns de seus filmes, claro. No entanto, talvez nenhum título mostre mais o lado multilateral desse pequeno grande gênio do cinema do que “Se Meu Apartamento Falasse”.

Lançado em 1960 – portanto, às vésperas da revolução sexual -, o filme pode parecer apenas uma comédia romântica bonitinha para quem vê o título em português e os doces rostos de seus protagonistas, Jack Lemmon e Shirley MacLaine. Porém, este é um filme de Billy Wilder – ou seja, há mais substância do que uma capa de DVD pode tentar transmitir.

Somos apresentados primeiro a Lemmon. Ele é C. C. Baxter, um contador em meio a tantos outros em uma grande corporação. O que o diferencia dos demais? Sua relação com os chefes, motivada por um ‘bem maior’: Baxter empresta seu apartamento para que eles – que são casados -, digamos, aproveitem a noite com suas namoradas. Uma delas é Fran Kubelick (MacLaine), a simpática ascensorista da empresa, que conquista o coração de Baxter, antes que ele descubra que ela está envolvida com o ‘poderoso chefão’ da empresa.

Em preto-e-branco, “Se Meu Apartamento…” é um filme simples, com takes longos e galgado mais nos diálogos e nas interpretações de seus protagonistas (e do ótimo coadjuvante Fred MacMurray, que vive o chefe por quem a personagem de MacLaine é apaixonada). O roteiro de Wilder e seu colaborador I.A.L. Diamond é um primor, cheio de detalhes e frases que ficam na cabeça do espectador.

Mas, de nada adianta um bom roteiro e um diretor competente se os atores não correspondem. Nesse caso, Wilder contou com dois talentos especiais. Em seu segundo filme com o diretor, Jack Lemmon personificou de vez o arquétipo do “everyday guy”, que vemos todos os dias. Talvez por isso, Wilder tenha brincado tanto com o talento de Lemmon para a comédia. Nesse filme, por exemplo, ele nos brinda com cenas memoráveis, como a que, trabalhando em meio a um mundo de contadores (em uma técnica de filmagem que influenciou vários filmes de protagonistas solitários em meio a empregos miseráveis, como ‘Beleza Americana’), tenta driblar uma gripe e os chefes, sedentos pela cobiçada chave de seu apartamento.

se meu apartamento falasse billy wilder jack lemmonJustiça seja feita, “Se Meu Apartamento…” é um filme de Jack Lemmon. Que outro ator poderia fazer, por exemplo, uma cena em que cozinha usando uma raquete de tênis soar tão natural, como se fosse algo normal, que todo mundo faz? O talento que ele tinha para a comédia e a maneira com que conseguia equilibrar as ‘gags’ com o drama do personagem é algo raro de se ver. O cinema viu atores mais versáteis e talentosos ao longo dos anos, mas poucos apareceram com essa habilidade de mudar da comédia para o drama em segundos, que Jack tanto dominava. (E que delícia vê-lo dançando, bêbado, de chapéu-coco! Como não lembrar de Chaplin?)

Do outro lado do ringue, MacLaine nos apresenta uma personagem multifacetada, que ‘cresce’ perante os nossos olhos. De menina inocente a mulher desacreditada (e, no fim, sarcástica, a ponto de proferir uma das falas de encerramento mais legais da história do cinema), a irmã de Warren Beatty cria alguém de carne e osso em meio às bonecas de porcelana que o cinema norte-americano estava adorando produzir nos anos 50. De uma metáfora brega – mas bonita – sobre um espelho quebrado ao esperado “shut up and deal”, Fran se torna alguém por quem torcemos graças ao talento de MacLaine.

A química entre ela e Lemmon é explosiva, mesmo sem grandes momentos românticos. A sintonia foi tão grande que eles voltaram a trabalhar sob a batuta de Wilder três anos depois, em “Irma La Douce”.

E por falar em Wilder, o diretor costura, com perfeição, os nós da trama que roteirizou. Sempre se preocupando em mostrar a humanidade dos personagens, ele nos coloca no lugar, ou pelo menos ao lado, de quem está na tela. Um exemplo simples é a primeira cena em que vemos quem Baxter realmente é e o que ele faz quando quer relaxar – em vez de mostrar as reações do personagem enquanto assiste TV, Wilder nos coloca vendo a programação com ele; por isso, nos frustramos quando Baxter volta à tela e se indigna com mais uma propaganda, que aparece em vez do filme que gostaria de assistir. Outro momento em que isso acontece é quando o personagem de Lemmon, dentro da sala que ganhou após ser promovido, olha para os ex-colegas. Isso sem falar nas vezes em que Wilder acentua a solidão do protagonista, como a cena em que ele senta em um longo banco de uma praça em meio à madrugada e à neve.

Além de um grande drama com pitadas de humor, “Se Meu Apartamento Falasse” também levanta questões importantes e pertinentes para aquela (e qualquer) época, como o eterno “vale tudo para subir na empresa?” e até onde devemos ir “por amor”. São tópicos que o cinema abordou mil vezes, mas poucas com o humor e a verdade de Wilder.

O filme se passa entre o Natal e o Réveillon, duas datas que significam união, amor ao próximo e tudo mais, mas que também podem ser bem melancólicas. No caso de “Se Meu Apartamento…”, as festas de fim de ano são o pano de fundo para uma história que, apesar de suas pitadas de humor, toca na ferida – e toca bonito. “Shut up and deal!”