Há mais de 50 anos, Martin Luther King fazia o seu célebre discurso em frente ao Lincoln Memorial, falando sobre o sonho de ver uma sociedade livre do racismo. Desde então, embora os negros tenham conquistado muitos direitos civis que antes lhe eram negados, eventos recentes, como os protestos em Ferguson e a morte de Eric Garner em Nova York, deflagram o quanto a questão do preconceito racial ainda é forte na sociedade norte-americana. É nesse contexto que Selma se destaca como um filme que, além de funcionar como um registro histórico importante, não tem medo de se assumir politicamente, lembrando que cinema também pode ser um ato de resistência e afirmação social.

Para isso, o longa dirigido por Ava DuVernay foge da escolha óbvia de pegar o já mencionado discurso como pano de fundo e prefere se voltar sobre um outro momento da vida do Dr. King e do movimento afro-americano: a luta pelo direito ao voto, que culminou em marchas realizadas da cidade de Selma, no interior do Alabama, até a capital do estado, Montgomery, em 1965.

Além do tema por si só já ser importante, o grande mérito do filme é ser um belo exemplar do protagonismo negro no cinema. Ao contrário de filmes que se propõem a discutir a questão racial, mas acabam dependendo da figura do “branco bonzinho salvador da pátria”, como é o caso de Histórias Cruzadas (ou até mesmo a aparição de Brad Pitt no final de 12 Anos de Escravidão), Selma reconhece seus personagens negros como condutores de sua própria luta e história. Mesmo o presidente Lyndon B. Johnson (vivido aqui pelo competente Tom Wilkinson), responsável por aprovar a lei que permitiria o voto irrestrito dos cidadãos negros, é retratado com uma carga de incertezas que o faz passar longe desse estereótipo do redentor branco. Uma escolha, aliás, que gerou polêmicas, já que muitos defendem que Johnson sempre foi a favor dessa luta.

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No filme, tanto o presidente quanto os ativistas negros terão como ponto de partida de ação e reação a figura de Martin Luther King. Assim, o conciso roteiro de Paul Webb e DuVernay legitima King como ícone e líder, e acerta ao lhe trazer humanidade, contrabalançando seu peso político com seus próprios receios e sua vida pessoal. Essas nuances encontram força no ótimo e delicado trabalho de David Oyelowo no papel, especialmente em sua dinâmica com Carmen Ejogo, na pele de sua esposa Coretta. A hesitação de King quando é confrontado pela mulher acerca de uma suposta infidelidade é uma das cenas que ajudam a lhe conferir tridimensionalidade, assim como sua tristeza ao reconhecer que a violência sofrida por integrantes do movimento é brutal, mas, ao mesmo tempo, necessária para chamar a atenção sobre a truculência policial e assim conseguir mais apoiadores para a causa. Oyelowo realmente merecia uma vaguinha entre os indicados a Melhor Ator no Oscar deste ano.

Ainda que King seja claramente o protagonista, DuVernay não deixa de mostrar outros personagens importantes para aquele momento – mais do que uma cinebiografia, Selma busca abordar todo o contexto de luta daquele período. Assim, temos pontas de Malcolm X (Nigel Thatch) e J. Edgar (Dylan Baker), cuja aparição, embora rápida, é fortalecida pelos letreiros referentes a relatórios do FBI, reforçando durante toda a projeção a vigilância ameaçadora sob a qual se encontravam King e outros ativistas. Pena que a personagem de Oprah Winfrey (não por acaso, uma das produtoras) seja escolhida para encarnar quase todas as violências e humilhações do povo negro em uma pessoa só. Dá até pra fazer um drinking game contando todas as cenas em que Oprah aparece sofrida até o fim do filme, geralmente em planos fechados para reconhecermos melhor a apresentadora.

Com tantos elementos importantes em cena, o maior ponto fraco é mesmo a direção de Ava DuVernay. Embora seja notável vê-la ganhando espaço como uma diretora negra, DuVernay carrega Selma de um estilo que muitas vezes chega a lembrar um telefilme pra lá de convencional dos anos 90 – e o slow motion constrangedor de muitas das cenas de violência aos cidadãos negros também não ajuda muito. Além disso, a condução quase melodramática de algumas sequências, com uma trilha sonora chorosa ao fundo, leva a pensar que a diretora podia ter confiado um pouco mais na contundência do material que tinha em mãos, como acontece no caso de 12 Anos de Escravidão, por exemplo.

Felizmente, isso não chega a comprometer seriamente o longa. Mesmo que não seja um grande filme, Selma ainda se mantém como um forte exemplar por conta de seu papel histórico e seu discurso. Talvez isso explique uma de suas únicas indicações ao Oscar, disputando como Melhor Filme (será um mea culpa da Academia?). Se as palavras “I have a dream” ainda ressoam na nossa memória até hoje, é porque sabemos que ainda há muito a ser trilhado na luta contra o preconceito. As pessoas que vemos gritando selvagemente em apoio à violência policial no filme poderiam ser apenas caricaturas do passado; infelizmente, muitos deles ainda existem. Não precisa ir muito longe; basta abrir qualquer portal de notícias na internet e ver os comentários: eles estarão por lá.