“Sexo, Mentiras e Videotape” (1989) é um filme que talvez injustamente não tenha tanto apelo a um público mais jovem hoje, embora devesse. Em termos de indústria cinematográfica, o sucesso de público e crítica dessa pequena grande obra indie abriu espaço para que os anos 1990 fossem marcados pela profusão de nomes vindos do cinema independente, pois o longa foi um dos primeiros a colocar no mapa o nome do produtor Harvey Weinstein e, consequentemente, do estúdio Miramax (aquele, de “Pulp Fiction”, “O Balconista”, “O Paciente Inglês”, “Gênio Indomável”…).

A mídia que se apresenta já no título do filme, o videotape, parece datar o longa de Steven Soderbergh para além do tolerável. Porém, a tríade que ela forma com os outros termos que corretamente nomeiam o filme trabalha temas que as relações humanas do século XXI vieram a conhecer muito bem, tal como as consequências da facilidade de registro e acesso a nossas imagens pessoais.

Que essa faceta não engane você, leitor. Soderbergh passa longe de apresentar ao espectador uma espécie de conto moral com seu “Sexo, Mentiras e Videotape”. O caráter de cada personagem é, muito pelo contrário, sempre dúbio. O “herói” que acompanhamos no longa é um fetichista, Graham (James Spader), que chega em Louisiana com nada além de um carro, uma câmera e várias fitas de vídeo com registros de conversas nas quais mulheres relatam suas experiências sexuais. Ele fica hospedado temporariamente na casa do amigo, John (Peter Gallagher), um advogado yuppie que se passa por cidadão “de bem”, mas gosta de contar vantagem e trai a esposa, a infeliz Ann (Andie McDowell), com a cunhada Cynthia (Laura San Giacomo).

Comparativamente saudável!

A simbólica dicotomia que se forma entre Graham e Ann é marcante: ele é impotente, e só consegue satisfação sexual através do registro dos relatos das mulheres que entrevista; seu prazer é diretamente mediado pela tecnologia e depende dela. Já Ann nunca experimentou um orgasmo, o que lhe causa frustração no casamento; ela também não “funciona” direito, pelo menos dentro do esperado socialmente, especialmente por ser uma mulher extremamente bonita (e a câmera de Soderbergh destaca essa beleza, mesmo dentro da sobriedade da personagem). Esses dois personagens disfuncionais se complementam e, em dada medida, se entendem a partir de suas “falhas”.

O contraponto a eles vem com John e Cynthia, que não formam um casal no sentido tradicional do termo, mas vivem a sexualidade de maneira ironicamente tradicional: ele, sendo o homem “pegador”, que trai a esposa tal como lhe é socialmente esperado, enquanto que ela, sendo uma bartender jovem e sexy, age também dentro de uma expectativa social de ser “safada”. John e Cynthia são, ainda que hipócritas, “normais”. Essa hipocrisia, no entanto, é vista por Graham como a verdadeira doença que permeia as relações entre os demais personagens. Não por acaso, em dado momento ele dispara: “Eu olho para você e John e Cynthia e eu me sinto… comparativamente saudável!”.

Tal colocação não poderia vir de um personagem com uma forma tradicional de ver e estar no mundo, e James Spader domina completamente como expressar isso em “Sexo, Mentiras e Videotape”. Ele não se enquadra num perfil de galã nem mesmo para os padrões do final dos anos 1980. É um tanto franzino e seu olhar é triste e incômodo. Ele emula, de certa maneira, o desconforto inicial de se ter uma câmera voltada para si.

De certa maneira, a câmera é uma extensão do olhar de Graham, já que ele nunca aparece nos próprios vídeos. Já as fitas, estas estendem seu corpo e desejo ao gerar nele o êxtase onde o contato humano real falha. Tudo isso gera repúdio a John, que, “saudável”, vivencia a sexualidade de forma totalmente diversa. Ann, também, assusta-se com as práticas de Graham, mas ao contrário do marido, atrai-se lentamente por ele encontrar uma rota alternativa para atingir aquilo que ela também não alcança.

Ver e ouvir entrelinhas

Não por acaso, em termos visuais, o figurino de Graham e Ann são como que espelhos um do outro: os tons sóbrios de preto, branco, cinza e azul são presentes nos dois. Cynthia, de personalidade mais expansiva, arrisca-se com cores e cortes mais sensuais, e mesmo quando um pouco mais discreta, investe em elementos de vestuário e acessórios que a diferenciam da irmã. Já John investe quase que estritamente em ternos e roupas sociais, uma tentativa de colocar-se como “macho alfa” no quadro.

O som também é um item com o qual Soderbergh joga para gerar a dubiedade que reverbera em “Sexo, Mentiras e Videotape”. Já no início do filme, quando Ann conversa com seu terapeuta e expõe como sua vida é inerte, sua voz entrecorta imagens da sessão, mas também de Graham se aprontando para pegar a estrada que o conduzirá a ela. É também através da fala/som que John se vangloria de chamar a atenção das mulheres sendo casado, enquanto conversa com uma pessoa que não vemos, apenas ouvimos. Em suma, eles sempre dizem algo importante, mas raramente a quem deveria de fato estar dizendo. Isso demarca o plano conflituoso dos personagens, que se intensifica quanto mais eles são capazes de expressar o que realmente tem a dizer um ao outro.

Mesmo as fitas de Graham, produto audiovisual, têm no som e na fala o seu foco. Mais que ver as mulheres que ele registra, interessa-lhe o que elas falam e como abrem seus pensamentos e desejos de forma honesta, eventualmente até mais do que se não vissem na câmera uma proteção entre elas e o homem que a manipula. Não por acaso, quando Ann decide gravar sua própria fita com Graham, isso define o turning point da trama dos demais personagens, pois a expressão de si traz as consequências de finalmente falar a verdade. Nesse sentido, a montagem, embora nada experimental à primeira vista, resulta numa brincadeira curiosa ao permitir que o som se infiltre por entre os cortes, ressignificando diversos trechos.

Para além do sexo e das mentiras, o filme de Soderbergh joga com algo que passa longe de ter envelhecido a nós hoje: a maneira como a tecnologia e o registro de si nos afeta, e como esse registro nos impele à auto expressão. Enquanto muitos trataram e tratam o tema observando os perigos inerentes a ele, “Sexo, Mentiras e Videotape” o encara como catarse.