As cenas exibidas durante os créditos finais de “Sniper Americano” reforçam a sensação dos 134 minutos anteriores de projeção: Chris Kyle era um herói capaz de lutar pelos seus parceiros ao ponto de dar a vida por eles, representando o melhor dos EUA. Tamanha admiração, porém, se dá entorno de um homem conhecido como o maior atirador de elite do país, responsável pela morte de mais de 160 pessoas durante a Guerra no Iraque. O choque entre essa visão mistificadora pretendida por Clint Eastwood com o fato chocante da quantidade absurda de assassinatos cometidos pelo protagonista cria uma produção de moral muito duvidosa.
O DNA de “Sniper Americano” mostra um viés conservador: Clint Eastwood sempre foi apoiador do Partido Republicano, conhecido por fortes laços com a indústria bélica e ideias menos progressistas; Chris Kyle foi nascido e criado no Texas, estado onde o mercado de armas é uma das paixões da região. Esses ingredientes contribuem para tornar o filme com tom próximo de alistamento militar e transformar o protagonista em herói nacional.
Desde o começo do filme, Chris Kyle é um símbolo americano e, acima de tudo, texano: filho de uma família religiosa de ir à Igreja todo domingo, aprende com o pai o amor pelas armas e a necessidade de defender aqueles ao seu redor. Na fase adulta, se torna um machão de bom coração capaz de ter um bom relacionamento amoroso com a esposa e criar os filhos da melhor maneira possível. Como bom patriota, porém, quando a pátria-mãe o chama para o combate devido a ataques cometidos dentro de casa (leia-se, 11 de Setembro de 2001), Kyle larga a família e embarca rumo à guerra. Clint Eastwood não mede tintas fortes para tudo isso e chega ao ponto de colocar Bradley Cooper segurando um urso de pelúcia laranja para mostrar como aquele cara é um sujeito família ou o atirador ligando para casa no meio de uma batalha somente para saber como está a mulher.
“Sniper Americano” se complica mesmo quando vai para a guerra e nas consequências geradas pelos atos do protagonista. O roteiro escrito por Jason Dean Hall a partir do livro escrito pelo próprio Chris Kyle não aprofunda nos questionamentos das mortes cometidas pelo atirador de elite. O filme busca apenas analisar os efeitos da guerra em vez das próprias ações do protagonista. Não sabemos de forma clara se ele sente orgulho dos assassinatos daquelas 160 pessoas e se matar tornou-se algo banal. Isso ganha respaldo ao perceber que não são as mortes que o incomodam ao voltar para casa e sim a impossibilidade de salvar mais compatriotas durante a guerra. Clint Eastwood falha nessa abordagem por optar pela análise mais conveniente na criação do herói americano em vez de aprofundar na mente de Chris Kyle e na perda do valor da vida humana em favor de uma nação, além de não debater se todas as vítimas eram realmente envolvidas com os grupos pró-Saddam Hussein e Talebã ou havia pessoas inocentes nessa fúnebre contagem.
Isso se torna ainda mais grave pelo fato de Clint Eastwood agir de maneira cínica ao preferir esquecer qualquer contexto político em “Sniper Americano”. Exceto por um pequeno diálogo entre Chris Kyle e um soldado do agrupamento, não há trechos sobre os importantes debates ocorridos nos EUA a partir de 2004 relacionados à necessidade de se invadir o Iraque. Saber como pensava uma figura tão central nesse conflito seria interessante para aumentar ainda mais a riqueza psicológica do personagem como iria marcar uma posição do projeto sobre o assunto em vez apenas de mitificar Kyle.
Como todo filme de guerra produzido em Hollywood, infelizmente, o estrangeiro sempre fica relegado ao papel de ameaça, chegando ao ponto de termos um atirador de elite iraquiano com roupas pretas e com a trilha ameaçadora ao fundo a toda vez que aparece como um grande vilão. Outro clichê se faz presente também com o fato da morte de inúmeros iraquianos acontecerem sem grande impacto na narrativa, enquanto basta um soldado americano morrer para virar uma consternação. Seria a desumanização de Chris Kyle chegando a “Sniper Americano” ou a desumanização de Chris Kyle nascida, entre outros fatores, de filmes como esse?
Apesar de todas essas ressalvas, não dá para falar de “Sniper Americano” sem elogiar o excelente desempenho realizado por Bradley Cooper. O ator da série “Se Beber, Não Case” já havia feito bons trabalhos ao lado do parceiro David O. Russell em “O Lado Bom da Vida” e “Trapaça”, porém, ao interpretar Chris Kyle, ele consegue atingir a maturidade. Observar a diferença corporal dele nas cenas de guerra em que consegue ficar mais desenvolto contra a postura rígida e tensa nos momentos vividos no Texas mostra as nuances de uma grande atuação. Já Sienna Miller se esforça, mas o roteiro é pouco generoso com a personagem, restando cenas de choro e corre-corre atrás do marido.
Com uma montagem capaz de transmitir tensão pela quantidade de ângulos disponíveis para ver todas sequências de ação sem deixar o espectador desorientado, uma edição de som detalhista para cada disparo de tiro e explosões, “Sniper Americano” desperdiça a possibilidade de ser um clássico do cinema ao se deixar envolver na imagem de herói de Chris Kyle para as Forças Armadas dos EUA e para o estado do Texas. Longe da contestação de obras como “Taxi Driver”, de Martin Scorsese, e “Nascido em Quatro de Julho”, dirigido por Oliver Stone, Clint Eastwood resolveu adotar uma linha conservadora, erro fatal quando se pretende contar a história do maior atirador de elite da história americana.
Esse filme parece propaganda do partido republicano. Aliás, Clint Eastwood é bem dado a isso…
Todos os elementos do “deep south” estão nesse filme: o Cowboy machão texano, a educação pautada por Igrejas Batistas, o hábito de caçar cervos (hello,Sarah Palin!), a fraternidade entre os “milicos” num quase “um por todos e todos por um”, bares, caipiras e o nacionalismo inflamado.
Engraçado que o protagonista não desce do pedestal de Superman sulista mesmo quando volta da guerra visivelmente doente, fato mais do que normal após tanto tempo em combate.
É uma consulta ao médico, umas boas ações com soldados que voltaram estropiados da guerra e o cara está bem, flanando numa bela fazenda texana com a familia, sem nenhum trauma do passado!
O cara não enlouquece, não surta, não se desespera, não é humano! Mesmo o Superman se enfraquecia diante da criptonita, mas o Sniper de Eastwood vai da glória (?) da Guerra para a morte de forma triunfal, máscula, sem essas frescuras de psiquiatria, afinal o que é matar mais de 150 pessoas?
Vamos comparar:
Em Os Imperdoáveis, Clint desconstrói a imagem heroica do pistoleiro. Na Conquista da Honra ele trata do impacto do teatro de guerra na vida de alguns homens. Nas Cartas de Iwo Jima tentou explorar o outro lado da batalha no Pacífico, humanizando os soldados japoneses.
Chega em Sniper Americano e parece que toda essa desconstrução tímida (tem de ser tímida, afinal o cara é do Partido Republicano e chegou até a ser prefeito pela legenda) do panteão norte-americano desceu pelo ralo. O que aconteceu? Há a hipótese de que ele tenha se engessado já que se trata de uma biografia e qualquer possibilidade de crítica por parte dele pode ser encarada no Texas e no Partido Republicano como uma afronta. Outra hipótese é que a trajetória de Kyle fale por si mesma, ou seja, diferente de William Munny em Os Imperdoáveis que descreve seus atos e os lamenta incessantemente, o atirador prefere o silêncio e ficamos sempre sem saber se ele pensa no que fez ou se já se tornou uma máquina de matar.
Consequentemente fica a dúvida cruel no ar: E aí? Sniper Americano é crítica ou louvor à Guerra no Iraque? Kyle é um herói ou um novo Adolf Eichman, o homem super-família que mandava pessoas para Auschwitz sem qualquer remorso?
Concordo com o Caio: Se o Eastwood não quer polemizar, no mínimo deveria insinuar a que veio o seu Sniper Americano. Porque numa primeira olhada parece mais do mesmo (e a publicidade ao redor do filme basicamente só diz isso). E pior: parece desmerecer toda a obra que ele como diretor vinha construindo desde os anos 90 pra cá. O enigma de Kyle em outro contexto até poderia ser interessante, mas da forma como está posta no filme faz dessa uma das produções mais enfadonha do velho Clint.
Quem não tinha remorso em matar pessoas, inclusive seu próprio povo, foram além de Hitler, os comunistas, socialistas Mao Tsé-tung e Stalin. Revoluções de Mao Tsé-tung superam número de mortes de Hitler e Stalin. Nenhum outro governo no mundo matou tanto quanto eles.