Todo mundo engana todo mundo, com variados graus de sucesso, em Trapaça, novo filme do diretor David O. Russell, consagrado recentemente pelos sucessos de O Vencedor (2010) e O Lado Bom da Vida (2012). Irving Rosenfeld é um exemplo. Apesar de enganar muita gente nos seus golpes, Irving não consegue realmente disfarçar a falsidade do seu topete. Na cena inicial do filme, o vemos penteando o que lhe restou de cabelo sobre a sua cabeça e grudando um topete para esconder a calvície. Era uma pequena mentirinha, porém necessária para que ele continuasse vivendo e mantendo sua autoestima.

A enganação pode ser autodirigida, porém sempre existe mais gente para ser enganada. A história (verídica) de Rosenfeld é a história de um trambiqueiro. Na década de 1970, ele era um dono de lavanderias que dava golpes com sua namorada Sydney Prosser. Ela se passava por inglesa e, com seu toque de classe, o casal atraía alguns pobres incautos com a promessa de empréstimos fáceis. Por anos eles ganharam dinheiro desse jeito e foram felizes… Até surgir em seu caminho o agente do FBI Richie DiMaso, que descobre o esquema.

DiMaso força Rosenfeld e Sydney a cooperaram incriminando outros peixes mais graúdos, gravando-os em vídeo. Com o tempo, os trambiqueiros e o homem da lei se envolvem numa trama rocambolesca na qual a corrupção parece estar amplamente disseminada. Mas também parece divertida, com aquelas roupas, penteados e trilha sonora da época…

Assistir a Trapaça é como entrar num baile temático dos anos 1970, onde a recriação da época serve ao propósito da sátira. Investindo pesado nos aspectos mais caricatos, tanto da história quanto dos seus personagens, o diretor Russell tem como objetivo mostrar o lado mais selvagem da sociedade americana, no qual todos fazem o que for preciso para sobreviver. Visivelmente inspirado por filmes similares de Martin Scorsese, Russell faz uso de várias marcas registradas típicas do criador de obras como Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995) e do recente O Lobo de Wall Street (2013).

Como nesses filmes, Trapaça faz uso da narração em off para dar voz a vários personagens, e de movimentos de câmera elaborados para nos apresentar ao universo da história. Russell também conta com um grande elenco, e quase todos já trabalharam com ele nos seus dois projetos anteriores: Christian Bale como Rosenfeld, Amy Adams como Sydney, Bradley Cooper como DiMaso, Jeremy Renner como o prefeito Carmine, e Jennifer Lawrence como Rosalyn, a verdadeira esposa de Irving – uma mulher instável que pode por todo o esquema a perder. Há também uma divertida ponta de Robert De Niro que remete claramente aos personagens mafiosos vividos por ele nos épicos scorseseanos.

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Quanto ao trabalho com o elenco, Russell se tornou conhecido como diretor “de atores”, e permite a eles liberdade para construir e trabalhar com seus personagens. Como o filme tem um tom satírico, a liberdade parece ter sido demasiada em alguns casos – Cooper e Lawrence têm momentos de verdadeiro exagero em suas composições, entregando-se à caricatura. Já Adams e Bale atuam de forma mais séria e fazem dos seus personagens os mais interessantes do filme. Ela, curiosamente, é a vigarista que anseia por algo verdadeiro em sua vida, e ele, apesar da sua aparência grotesca (além de careca, Bale engordou para o papel e ostenta uma considerável barriga), vive uma figura humana, vulnerável, mas também muito esperta. O desempenho do ator é a alma do filme e faz com que nos importemos com a sua trajetória.

É através do personagem de Bale que as intenções satíricas de Trapaça ficam claras. O pequeno estelionatário se choca, ao longo da trama, ao perceber como a safadeza ao seu redor se torna cada vez maior. Políticos, autoridades e mafiosos acabam sendo pegos na teia de corrupção flagrada pelas investigações das quais ele participou. Até o agente do FBI se deixa levar, desobedecendo a regras da instituição e tornando-se obsessivo. É como se a sociedade americana fosse uma grande trapaça, parece dizer Russell, e nesse contexto Irving Rosenfeld até se torna uma espécie de “pequeno herói”.

Trapaça só não é melhor justamente porque lhe falta aquela energia maníaca típica de Scorsese. David O. Russell nunca realmente consegue nos puxar para dentro daquele universo amoral. Nem consegue, de forma subversiva, nos fazer vibrar com ele. Trapaça diverte mas não chega a alucinar, é repleto de grandes atores mas só poucos deles se destacam de verdade, e no final acaba sendo apenas um pequeno truque de enganação. O diretor tenta nos tapear, usando os macetes de outro cineasta e uma reconstituição de época caricata para entregar algo que parece um grande filme, engraçadíssimo e politicamente incorreto, mas que no final das contas é apenas bom e razoavelmente divertido.

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