Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, baseado na seminal obra homônima de Graciliano Ramos, é dos filmes mais tristes do cinema. Uma tristeza particular, brasileira, nordestina. É sobre a face mais cruel da nossa desigualdade social, um dos elementos formadores do nosso país. Sobre pessoas que vivem abaixo da linha da miséria, vagando de esperança em esperança, sonhando com comida, água, sombra, um par de sapatos, chuva, uma cama para dormir. Os conflitos dos personagens são elementares como é a vida das pessoas no sertão nordestino, que anseiam pelo mínimo para uma existência digna.

Lançado em 1963, antecedeu em poucos meses a Deus e o Diabo na Terra do Sol, o que acabou atrapalhando a trajetória do filme, pois eram muito comparados. O filme de Glauber recebeu aclamação mais imediata que o de Nelson, principalmente no Brasil, o que fez com a recepção de Vidas Secas fosse mais dividida num primeiro momento. Daí se vê que comparações desse tipo nos afastam das discussões mais importantes. São dois filmes brasileiros essenciais, afinal de contas. Talvez não tenham a mesma fama, mas certamente possuem a mesma excelência artística.

Indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1964, venceu o Prix Cinémas d’Art et d’Essai, do júri da associação francesa de cinemas de arte, o prêmio do júri do Office Catholique Internacional du Cinéma e o Prêmio de Meilleur Film pour la Jeunesse, júri formado por estudantes universitários. Tornou-se respeitado internacionalmente, citado como um dos melhores expoentes do Neo-realismo italiano, sendo publicamente citado por outros mestres como o próprio Glauber, e Jean-Luc Godard. E é importante lembrar que Nelson já tinha no currículo obras muito importantes como Rio 40 Graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957) marcos do início do Cinema Novo.

A obra conta a história de uma família de retirantes no sertão de Alagoas, em 1941. Fabiano (Átila Iório), Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), dois filhos pequenos e a cachorra, Baleia. Em longos planos, poucos diálogos, e sem apego à narrativa tradicional de atos e trajetória de personagens, Nelson traz a secura da escrita de Graciliano para a decupagem e montagem, apresentando sem pressa e floreios a duríssima vida daquelas pessoas com pouca ou nenhuma perspectiva, massacrados pela arbitrariedade das classes dominantes e a desonestidade do patrão.

O diretor manteve-se fiel à obra literária, principalmente em relação à simplicidade da trama. Os eventos têm seu tempo, e acontecem no ritmo da vida daquelas pessoas. Há várias pequenas sequências de ações muito simples, das personagens se relacionando com o espaço cênico e entre si através de olhares e expressões. Essa escolha pode dar a entender que faltam palavras para compreendermos com mais riqueza de detalhes a trama, mas essa ideia se esvai ainda nos primeiros minutos.

Faz parte do conceito da obra uma compreensão do que é o sertão, qual é o seu tempo, temperatura, que condições ele impõe a quem o atravessa. E a aridez (no sentido amplo da palavra) pela qual os personagens passam não se vai uma vez que o incômodo está estabelecido. Ficamos mais tempo, os planos duram mais do que o nosso instinto de preservação demanda, pois naquela realidade o tempo passa devagar, ainda mais quando se caminha horas no calor, com sede, fome e fadiga. Ao vermos o cotidiano banal e sem filtros daquela família, sua caminhada errante ganha peso completamente diferente, distante de arcos dramáticos esquemáticos, e mais condizente com as histórias sobre as pessoas que Graciliano queria retratar. Não há necessidade de querer mais que isso, já é suficiente. Qualquer artificialismo para tornar a história mais reconhecível ou palatável iria contra o cerne da obra.

Exemplo disso também é o corretíssimo uso do som. Sem trilha musical convencional, o som pontua discretamente as dificuldades daquelas vidas através de ruídos diegéticos como o som do carro do boi, ou no acorde de um violino desafinado, como na abertura e encerramento. É um elemento discreto, mas que cumpre papel importante para situar o desconforto daquelas pessoas.

Ao mesmo tempo, a direção de Nelson é bastante precisa e econômica, auxiliada pela concisão da montagem de Rafael Justo Valverde e Nello Melli. Uma vez que se compreende o ritmo das ações é perceptível o quanto o filme é direto ao ponto, com a decupagem estabelecendo com sucesso de quem é o ponto de vista de cada cena, com os acontecimentos na tela sempre sendo compreendidos com simplicidade, de maneira visual. É uma direção simples, mas que tem como base uma compreensão de cinematografia muito avançada. Nelson tem domínio o tempo todo das informações que passa, e o faz no tempo certo, compreendendo as possibilidades que o espaço e seu elenco proporcionavam, estabelecendo sempre uma marcação de cena orgânica aos atores, indiscutivelmente pertencentes à geografia vista na tela. O naturalismo é tão impactante, que muitas vezes parece que se está vendo um documentário. Observe, por exemplo, como são filmados os diversos animais que permeiam a história, em especial os abutres.

Talvez o destaque que primeiro salta aos olhos, a fotografia de Luiz Carlos Barreto e José Rosa realmente salta aos olhos em cada plano. A combinação do preto e branco com o forte contraste ressalta de maneira orgânica e impactante os signos que fazem parte daquela geografia: a forte incidência do sol, a secura do solo, a vegetação da caatinga. Na verdade, poucas vezes o cinema brasileiro viu uma integração tão impressionante entre direção de fotografia, direção de arte (a vegetação labiríntica do sertão torna-o um cenário extraordinário) e elenco. São indivisíveis, dão ricos elementos aos outros, alimentam-se disso, existem por isso, na verdade, criando uma relação palpável, que extrapola o que está na tela. É vivo, real, indiscutível.

Mesmo com poucas palavras, cada personagem tem tempo de tela suficiente para que conheçamos seus desejos, que normalmente tratam-se de anseios muito imediatos. O mundo existe a partir daquelas pessoas, e o jeito de cada uma interfere nos demais. É apenas aquilo que existe, aquelas pessoas naquele lugar. A angústia de cada um é mostrada através das trocas de olhares, ou quando esses olhos não se cruzam, ou quando falam um por cima do outro, ou quando apenas observam com curiosidade uma ratazana (ou seja, almoço) passando. Vale ressaltar a marcante Sinhá Vitória de Maria Ribeiro, com a dor e cansaço de uma vida no olhar, e a participação do então desconhecido Jofre Soares, o fazendeiro, que despontou nesse filme, e mais tarde se tornou um dos maiores nomes do cinema brasileiro. E claro, Baleia, uma cachorra aparentemente ordinária, sem pedigree, mas que rouba o filme em todo plano que aparece, sendo a personagem mais imediatamente reconhecida depois de todos esses anos.

E tudo caminha para a sua inevitável morte. Não tenho receio de dizer que a morte de Baleia é dos maiores momentos do cinema brasileiro. Na verdade coloco dentre outros para ter o mínimo de responsabilidade, pois não consigo imaginar um momento tão impactante quanto este, no nível simbólico e estético. É absolutamente impressionante, coisa de gênio, inesquecível. Uma espécie de síntese do quanto a secura daquelas vidas acaba matando inclusive as coisas bonitas que possuem.

O final também reserva um discurso bastante contundente de Sinhá Vitória sobre a condição de “bicho” que vivem, em que tudo é negado, dificultado ao extremo. É a fala, na verdade, de muitas pessoas que enfrentaram situação parecida nos sertões do nordeste, que inspiraram a obra do escritor alagoano. Nos últimos anos, entretanto, tal discurso foi fartamente acusado de ser vitimista. Em momentos assim, como os que vivemos hoje, obras como Vidas Secas tornam-se ainda mais relevantes, pois contribuem como registro artístico e histórico para a compreensão de que enquanto houver pessoas sem o que comer, onde morar, é inadmissível como ser humano pensar que vitimismo é o oprimido contestar esta condição, e não o privilegiado abrir mão de regalias. E o fato da obra permanecer intacta quanto a sua contundência e relevância comprova que a obra de Nelson e Graciliano é gigantesca na cultura brasileira, mas também revela o quanto precisamos evoluir como sociedade, como seres que possuem empatia uns pelos outros.

Obras como essa tiram pessoas da invisibilidade, mostram ao mundo que elas possuem rosto, dores, e desejos como todo mundo. É a principal ideia do filme, com isso cumprindo papel maior, inclusive, do que a realização técnica dos departamentos. Essa é uma marca do cinema íntegro de Nelson Pereira dos Santos, que entendia que seus filmes poderiam cumprir papel muito maior do que apenas ser uma realização técnica de qualidade. Quando essa honestidade se alia a um dos melhores textos brasileiros, têm-se uma obra que fala sobre o Brasil de um jeito que talvez nunca se tenha visto novamente.