Ainda que muitos tentem permanecer o mais distante possível de redes sociais, smartphones ou qualquer forma mais tecnológica de interação, é inegável que a intensificação do fluxo informacional seja diretamente responsável por uma mudança nas formas de pensamento e de consumo, influenciadas pelo desenvolvimento de tecnologias e posterior acesso das populações a ela.

Uma recente reportagem do Buzzfeed News aponta como grupos de usuários idosos foram determinantes na eleição de Donald Trump em 2016, nos Estados Unidos, ou a dificuldade de escolas e professores em criarem novas formas de aula que envolvam melhor o pensamento digital. E aqui se entenda digital como um pensamento rápido, exponencial, e não a mera mediação por tablets e lousas eletrônicas. Todos esses conflitos geracionais resultantes desse período de transição entre maneiras de se pensar.

Não é tão difícil perceber o quão latentes são as diferenças, mesmo no cotidiano: é comum enxergar pais que se sentem pouco relevantes em meio à quantidade de informação que seus filhos têm acesso atualmente. Pais e mães, ainda jovens, tiveram uma educação básica com consultas a enciclopédias, professores autoritários e um regime político de opressão. Hoje, seus filhos têm quase qualquer resposta na palma da mão e na ponta dos dedos.

Esses conflitos de gerações causados pela rapidez exponencial das tecnologias se reflete em diferentes elementos da sociedade. Como se pode ver, a proposta deste texto é um pouco diferente dos demais: a educação, um dos focos do Vírgulas Cardeais, será o tema principal, enquanto audiovisual e literatura ilustrarão os questionamentos feitos.

PAIS SOMEM E FILHOS SALVAM O MUNDO

Hamilton Werneck, professor e doutor em educação, autor de 26 livros publicados, incluindo “Você finge que ensina e eu finjo que aprendo” (1993), menciona, em uma de suas aulas que houve um apagamento da figura dos pais em narrativas audiovisuais: crianças e adolescentes resolvem todos os problemas, por mais complexos que sejam, sozinhos.

A observação ganha força ao parar para pensar quantos produtos famosos os pais não aparecem, são imbecilizados ou irrelevantes para o andamento da história. O padrão se repete em desenhos destinados ao público infantil, como Rugrats (1991-2004), no qual bebês conversam e tramam soluções entre si, sem que os adultos consigam entender suas falas; As Trigêmeas, no qual três irmãs mudam finais de histórias clássicas. Mas também atinge produtos com um apelo não tão infantil assim: em A Vaca e o Frango (1997-1999), os pais são representados apenas por vozes e partes do corpo; os pais de Timmy Turner, em Padrinhos Mágicos (2001-2017) são mais imaturos, egoístas e neuróticos que o próprio filho de 10 anos.

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Parte II

A narrativa se repete em outros formatos e em narrativas mais complexas. Durante toda a saga original Harry Potter, livros e filmes têm suas principais ações desempenhadas por três alunos, acompanhando-os em um internato dos 11 aos 18 anos. Embora haja participações decisivas dos Weasley e Malfoy, os pais de Hermione são pouco citados, os de Harry estão mortos e seus tios têm atitudes desprezíveis. E, no fim, são os adolescentes que salvam tudo. O mesmo se repete em sagas como Percy Jackson e os Olimpianos – e seus filmes terríveis, e em Game of Thrones (2011-2019): Sansa, Arya, Bran, Jon Snow e Daenerys, órfãos de pai e mãe, se tornam, gradativamente, os protagonistas da narrativa.

ADULTOS DESCARTÁVEIS E BEBÊS ESPIÕES

Desventuras em Série seja, talvez, o exemplo mais completo de um produto que segue esse padrão em sua história. Originalmente uma série de doze livros, a trama acompanha os ricos e inteligentes irmãos Baudelaire, Violet, Klaus e Sunny. A história começa exatamente no momento em que descobrem que seus pais morreram em um incêndio, fazendo com que sua guarda e, consequentemente, sua herança, fossem passados por vários tutores.

O mais cartunesco deles e o principal vilão da história é Conde Olaf, interpretado na série por Neil Patrick Harris e no filme de 2004 por Jim Carrey, o que me faz pensar que esse talvez seja um dos personagens com um dos castings mais bem feitos que já vi. Ainda que o filme de 2004 não tenha chegado nem perto de ser bom: misturar três livros em um filme não daria certo de jeito nenhum.

Deixando claras as minhas predileções, vou usar a série (2016-2019) como parâmetro. Diferente de outros exemplos dados aqui, o apagamento dos pais não é um ponto isolado na narrativa: sua ausência assume um papel decisivo para toda a história, nesse sentido, se assemelhando muito ao início de Harry Potter.

Com o passar da trama, percebe-se que a história é composta por ausências constantes e que, mesmo no fim, continuam ausências. E é aqui que Desventuras em Série se desgarra dos outros exemplo: o protagonismo dos irmãos Baudelaire, por mais heroicos e inteligentes que sejam, vem de uma gradativa e consistente perda de esperança por parte do leitor/espectador.

Até certo ponto, os adultos com algum poder de decisão na história consideram que os irmãos Baudelaire devam ser protegidos, mas são incapazes de levar as crianças a sério e, consequentemente, de protegê-los de fato. Todas as figuras que poderiam, de alguma forma, assumir o lugar deixado por seus pais são eliminadas da narrativa, quer seja por morte, incapacidade ou perda de confiança.

Com o passar da história, não só os protagonistas sofrem, como também passam de protegidos a vilões, sob o olhar de uma opinião pública formada – e Desventuras em Série faz questão de lembrar isso de todas as formas possíveis – por imbecis. Enquanto isso, tentam descobrir as ligações entre seus pais e uma organização secreta de colaboração artístico-científica que, depois se descobre, também já não existe mais.

ENVELHECIMENTO DE OBRAS E PESSOAS

Por mais que tenha uma proposta estética steampunk que beira a alegoria e protagonizada por crianças, não é um produto claramente destinado ao público infantil. Pelo contrário, a estética é basicamente responsável por sublinhar toda a ironia na narrativa.

Pra ser sincera, até hoje tenho um pouco de pena por ter sido lançado no final da década de 1990, mesma época de muitos exemplos dados aqui e, mais especificamente,de Harry Potter, que certamente ofuscou o desempenho comercial da obra e também de uma possibilidade de espaço maior no cânone da cultura pop. O que me consola é saber que Desventuras em Série envelheceu bem.

Pensando na confluência de produtos culturais com crianças como protagonistas, é possível perceber a tendência de apagamento de figuras paternais e maternais em narrativas cada vez mais presentes em um imaginário globalizado. Esse fenômeno, principalmente em Desventuras em Série, tem um propósito de criticar instituições e a própria noção do que é “ser adulto” e o quanto isso pode estar acompanhado de conservadorismo e comodismo vazios. Ainda sim, é preciso questionar até que ponto esse tipo de postura narrativa colabora, ou não, para um maior distanciamento intelectual entre gerações e uma possível ideia de que pessoas ficam cada vez mais irrelevantes conforme envelhecem.