ALERTA: texto contém spoilers

A quarta temporada de “Better Call Saul” foi a aproximação decisiva da série com “Breaking Bad”. Se antes as cartas ainda ficavam meio nebulosas sobre como culminaria nos fatos vistos junto a Walter White, os 10 episódios deste ano deram as ligações exatas e a consolidação das personalidades conhecidas de Jimmy McGill/Saul Goodman e Mike.

Ocorrida na última cena da terceira temporada, a morte do irmão de Jimmy (Bob Odenkirk), Chuck (o excelente Michael McKean), é a grande sombra por trás deste ano. Desde o início de “Better Call Saul”, ele era o pêndulo moral do protagonista. Mais do que a namorada Kim Wexler (Rhea Seehorn) ou qualquer outro cliente, Jimmy tentava agir dentro da linha para orgulhar Chuck. Se durante o primeiro e segundo anos, ele busca negar a própria identidade de trapaceiro para tentar, sem sucesso, ser um advogado respeitado e orgulhar o irmão, agora, o anti-herói se vê sem amarras para aplicar os golpes.

Esta transformação se dá muito além das pequenas contravenções de como vender celulares com a promessa de que não serão rastreados ou enganar a advogada de acusação sobre uma falsa pressão social de uma pequena cidade para livrar um amigo da cadeia. Jimmy precisa se livrar do fantasma de Chuck e de qualquer culpa que possa ter sobre o suicídio para assumir a própria identidade contra a qual lutou por tanto tempo. A guinada sem volta de Jimmy para Saul começa justamente aí.

Logo no primeiro episódio, ao ver Howard (Patrick Fabian, sempre muito bem nas raras participações) dizendo se sentir culpado pela morte do antigo sócio, o protagonista surpreende e reage de maneira altiva como se estivesse esperando aquilo para seguir em frente, ou seja, não assumir a responsabilidade e livrar-se do fato como um inconveniente já ultrapassado. A partir daí, a desumanização de Jimmy segue a passos largos a ponto de vermos os golpes saírem do campo inofensivo para passar à assustadora forma como intimida um grupo de adolescentes marginais no fim do sexto episódio, digno de Walter White da terceira temporada de “Breaking Bad”.

A pá de cal chega em dois momentos-chaves da temporada ambas relativas ao processo de voltar à carreira de advogado. Na primeira sabatina, ele é reprovado apesar de um discurso esbanjando a típica confiança, arrogância, humildade e carisma dele. Ao ser questionado por Kim se em algum momento falou o nome de Chuck, a cara de incredulidade de Jimmy de ser este o motivo da recusa mostra a completa falta de conexão dele com a realidade. Por fim, a manipulação arrojada feita ao longo do último episódio em que finge chorar na frente do túmulo do irmão e realiza um discurso comovente, mas, puramente estratégico, prova que a barreira moral imposta por Chuck foi ao chão e não há mais retorno: Jimmy virou Saul. Tudo isso em um show de Bob Odenkirk digno de qualquer prêmio e homenagem – aliás, vale a pergunta: estará ele melhor do que Bryan Cranston em “Breaking Bad”?

No meio disso, há Kim. Mesmo com toda a complexidade envolvendo Jimmy, impressiona como a série consegue trazer uma das personagens femininas mais ricas da história da televisão norte-americana. Recuperando-se de um grave acidente no fim da terceira temporada devido ao excesso de trabalho por ter pego a conta do banco Mesa Verde, ela repensa o modo de vida o qual está levando sem tempo para absolutamente nada. Essa reflexão a leva para um caminho curioso de pegar a contramão do setor jurídico para atender casos de pequeno porte, porém, mas, intensos e até mesmo interessantes. O olhar desanimado para o tamanho da expansão pretendida pela Mesa Verde e a insistência em permanecer no tribunal mesmo após o juiz a desestimular a ficar ali mostram aquela inquietude da personagem que amamos ver.

Evidente que a relação dela com Jimmy é o ponto central da personagem e por mais que saibamos que os dois não estarão juntos mais à frente vide os acontecimentos de “Breaking Bad” e ao início de cada temporada de “Better Call Saul”, a torcida para a continuidade do relacionamento é inevitável. Os primeiros passos, porém, já estão dados. Nunca os dois estiveram tão distantes algo brilhantemente exemplificado na abertura do sétimo episódio e o reconhecimento do protagonista disso ao conversar com a dona do salão de beleza mostra a consciência do estado do casal.

Acima de tudo, isso se dá justamente pela transformação de Jimmy em Saul, sendo simbólico o choro dela ao ver a forma como ele lê a última carta de Chuck sem qualquer traço de emoção. Não que ela não tente salvar o relacionamento ao indicar um psicólogo, dar uma bronca em Howard, embarcar em um possível último golpe e achar uma forma de entrar com recurso para que possa advogar novamente. Porém, Kim sabe que a história do dois está próxima do fim e a decisão de se tornar sócia da Schweikart and Cokely, frustrando os planos do protagonista de ter um escritório juntos, mostra que o lado racional já aponta o destino deles.

Veja que chegamos a este ponto da crítica da quarta temporada de “Better Call Saul” falando apenas de dois personagens tamanha a riqueza que ambos oferecem. Talvez por isso Vince Gillian tenha, finalmente, entendido que o rumo das outras histórias seja muito mais as ligações que levarão a série ao universo de “Breaking Bad” do que o desenvolvimento dos personagens com a mesma complexidade de Jimmy e Kim. Mike (o ótimo Jonathan Banks), por exemplo, vinha perdido há bastante tempo até, a partir da metade deste quarto ano, quando começa uma inesperada amizade com o líder dos responsáveis pela construção do galpão de Gus Fring (Giancarlo Esposito) para a produção de drogas, o alemão Werner Ziegler (Rainer Bock, também muito bem). O destino trágico visto na tensa sequência final dos dois é também a quebra definitiva da humanidade que ainda existia no capanga.

Nacho brilha no começo da temporada, incluindo um momento devastador com a pergunta do pai de quando ele vai sair da criminalidade, mas, vai perdendo força no decorrer dos episódios, enquanto Gus aparece em doses homeopáticas muito longe de brilhar como nos tempos de “Breaking Bad”. Por outro lado, tudo o que envolve Hector Salamanca e as referência à série anterior são memoráveis. Como não lembrar deste ano de “Better Call Saul” sem citar a introdução do irritante sininho no início do novo capítulo? Para completar, a chegada de Tony Dalton como Lalo (ele não está a cara do Josh Brolin em “Onde os Fracos não Têm Vez”) cria um ótimo antagonista para a próxima temporada.

Tudo indica que 2019 deve marcar a despedida de “Better Call Saul”. A proximidade com o universo de “Breaking Bad” está latente – já vimos até uma cena ambientada na mesma época da série – e a transformação do protagonista quase concluída. Falta apenas o fim do relacionamento com Kim e a entrada no universo do crime. Semelhante ao que acontecia ao programa protagonizado por Walter White, o humor tende a diminuir para a entrada de um drama trágico, especialmente, com o que vemos no destino em preto e branco de Saul calado, paranoico, cabelos ralos e isolado do mundo.

De agora em diante, “Better Call Saul” coloca a pergunta na cabeça do espectador: será ela melhor que “Breaking Bad”?

Minha resposta: ainda não, mas, pouco. Bem pouco.