“Bohemian Rhapsody”, como todos sabem, é uma das músicas mais conhecidas do Queen. De certa forma, é também a essência da banda: exagerada, dramática, experimental, festiva e sem muita intenção de ser didática ou de atender às exigências do mercado. Logo, um filme sobre essa trajetória e, principalmente, sobre o seu líder, Freddie Mercury (que conseguia abranger todas essas características citadas acima), seria interessantíssimo se seguisse essa mesma linha, a exemplo de biopics como “Não Estou Lá” ou “Control”. Mas o que se tem neste drama dirigido por (suspiros profundos) Bryan Singer é um filme quadrado, sem a menor intenção de ser tão inventivo ou flamboyant quanto o objeto que tenta dissecar na tela.

Com produção executiva de Brian May e Roger Taylor (respectivamente guitarrista e baterista do Queen), essa é uma cinebiografia que joga para a plateia, não há dúvidas. Isso já dá para perceber nos minutos iniciais, que levam o espectador em uma viagem rumo aos bastidores do Live Aid, concerto beneficente que teve uma das performances mais icônicas da carreira do Queen e de seu vocalista.

Aqui, já dá para perceber que “Bohemian Rhapsody” é recheado de fan services: ver a inconfundível guitarra que Brian May construiu para tocar (e que ele usa até hoje!), a energia quase religiosa que pairava sobre o estádio de Wembley e, claro, os trejeitos de Mercury são de fazer arrepiar até o mais cético dos fãs do quarteto britânico.

A sensação se repete em vários outros momentos em que o filme resolve, simplesmente, fazer música. O problema é que estamos falando de um drama sobre um artista recluso, que não era muito de dar entrevistas ou de dividir a vida pessoal com o mundo – exceto em suas canções. Talvez por isso, quando a película resolve sair do som ensurdecedor das multidões de Wembley para voltar aos shows em pubs que foram o embrião do Queen, a energia se dissipe – exceto, claro, quando há música.

“Is this real life? Or is it just fantasy?”

Fraco, o roteiro não consegue decidir que história quer contar. Temos um protagonista genial e autoconfiante, que aparece em mais de um momento dizendo que “sempre soube que queria estar em um palco”. No entanto, parece que essa receita não é tão interessante para a fórmula batida da cinebiografia inspiradora, que precisa sempre mostrar o quanto artista X ou Y era um gênio incompreendido entre seus pares – o que não era o caso de Mercury, que cativou e fez seus colegas de Queen comprarem sua loucura desde o início.

Logo, a vida pessoal de seu protagonista e suas aspirações se resumem a algumas cenas escrevendo letras de músicas e ao romance com Mary Austin, que realmente foi sua companhia mais frequente ao longo de toda a vida. A família aparece apenas em cenas pontuais, recheadas de clichês que precisam citar o quanto, pelo menos aqui, Freddie não tinha a aura de gênio (afinal, o shtick do artista incompreendido rende cenas ótimas para emocionar os votantes da Academia, risos).

Ainda assim, um dos pontos positivos do filme é o trabalho competente de seu elenco, com destaque, obviamente, para Rami Malek. O ator de origem egípcia faz um bom trabalho na pele de Freddie Mercury e realmente parece se divertir ao viver o personagem, sobretudo nas cenas musicais. Com a ajuda de um ótimo trabalho de caracterização, Malek ainda pende para a caricatura em alguns momentos mais íntimos do personagem, mas, quando está em cima do palco ou dentro de um estúdio, brilha como a estrela geniosa, teimosa e que sabia como ninguém reger uma plateia.

O trabalho das equipes de figurino, cabelo e maquiagem, aliás, é um dos pontos altos do filme. A reprodução de looks icônicos de Freddie era obrigatória: do casaco de pele para a performance “Killer Queen” no programa Top of The Pops ao figurino do clipe de “I Want to Break Free”, nada passa incólume.

Há ainda atenção com os outros membros da banda, que têm suas mudanças de visual ao longo dos anos cuidadas com atenção no filme. E aqui não dá para não mencionar o casting perfeito de Gwilym Lee, idêntico a Brian May tanto na aparência física quanto nos trejeitos elegantes do dono dos solos de guitarra do Queen. Vale destacar ainda a participação divertida e quase easter egg de Mike Myers, como o executivo que diz que “Bohemian Rhapsody” nunca será um sucesso e que ninguém vai cantar a música – se lembrarmos que o próprio Myers ajudou a apresentar a música para toda uma geração lá em 1992 com a famosa cena de “Quanto Mais Idiota Melhor”, as falas dele no filme de 2018 ficam ainda mais divertidas.

Mundo paralelo tem Rock in Rio nos anos 1970 e “retorno triunfal” no Live Aid

Pena que esse mesmo cuidado não se estendeu a aspectos do roteiro. Os malabarismos emocionais da trama não justificam ver a performance histórica de “Love of My Life” do primeiro Rock in Rio, de 1985, jogada para os anos 1970, (pré-’We Will Rock You’), ou uma invenção acerca da história por trás do Live Aid – o Queen do filme teve no show de Bob Geldof um retorno triunfal após 3 anos separados, enquanto na vida real eles estavam gozando da popularidade do disco “The Works”, que culminou em uma turnê com direito a um show no… Rock in Rio, poucos meses antes. Decepciona ver essa modificação total para criar uma atmosfera de triunfo na tela grande, ainda mais quando a performance (essa sim, recriada à perfeição pela equipe de Singer) é eletrizante e emociona gregos e troianos.

“Carry on, carry on, as if nothing really matters”

A invisibilização de Jim Hutton é outra escolha narrativa que incomoda. Parceiro de Freddie até o fim da vida, ele era um cabeleireiro que teve história bem diferente do garçom que aparece na tela. Claro que nenhum parceiro de Freddie foi tão importante para a história do Queen quanto Mary Austin (afinal, ela foi inspiração para grandes hinos românticos da banda nos anos 1970, como ‘Love of My Life’), mas foi, no mínimo, incômoda a forma com que o filme lidou com as primeiras relações de Freddie com homens. A mesma pasteurização e distância que enfraqueceram “Cazuza – O Tempo Não Para” se veem aqui.

O envolvimento de May e Taylor na produção executiva do longa brecou muita coisa, e isso é perceptível nas poucas alusões a drogas, exclusivas a Freddie – os outros integrantes da banda são apresentados como homens de família fiéis. A fama de mulherengo de Taylor ainda ganha duas ou três menções, mas o estilo de vida porralouca é atribuído totalmente a seu vocalista, ainda que com ressalvas – uma festa aqui, outra ali, algumas idas a bares gays (a escolha de ‘Another One Bites The Dust’ para uma dessas sequências foi tão sutil quanto um tiro de fuzil), mas nada para escandalizar tanto a tradicional família britânica.

Por fim, não dá para falar desse filme sem discutir o elefante no meio da sala, que é Bryan Singer. Como se sabe, o diretor foi demitido a poucas semanas do fim das filmagens, que foram assumidas pelo diretor de fotografia Newton Thomas Sigel e depois por Dexter Fletcher (responsável pela cinebiografia de Elton John, que chega aos cinemas ano que vem). Singer, vale lembrar, tomou chá de sumiço durante as filmagens e deu como desculpa uma “emergência familiar”, que coincidiu com a exposição de seu amigo Kevin Spacey como predador sexual em meio ao movimento #MeToo (o diretor, inclusive, coleciona denúncias de abuso de menores de idade…).

Não dá para dizer que a confusão nos bastidores envolvendo Singer resultou no que se vê na tela, até porque muitos dos problemas da trama residem em seu roteiro, de autoria de dois experts em cinebiografias, Anthony McCarten e (o quase sempre brilhante) Peter Morgan. De qualquer forma, o filme também tem problemas em sua montagem, repleta de fade outs estranhos, como o que encerra a sequência eletrizante da gravação/lançamento de “Bohemian Rhapsody” – um balde de água fria que termina de forma abrupta um dos melhores momentos da trama.

“Bohemian Rhapsody”, no fim das contas, é tudo o que um filme sobre Freddie Mercury não poderia ser: diversão frívola, pontual, e que pode até acalentar o mais órfão dos fãs do Queen, mas é apenas isso. Não faz justiça a genialidade daquele que era um dos grandes frontmen do rock e ainda manipula sua história sem maiores cerimônias, tudo para ficar na prateleira de outras tantas cinebiografias sem brilho e lançadas a toque de caixa nesta temporada pré-Oscar todos os anos. A sorte é que ainda temos a música, e ela salva tudo – inclusive esse filme.