Com os acontecimentos recentes em Orlando, nos EUA, o Cine Set gostaria de fazer uma pequena reflexão e tentar tocar naquela palavra que tanto tem aparecido nos bastidores da indústria e em sites como nós, que se propõem a analisá-la: representatividade.

Em linhas gerais, se um local frequentado por gays ainda não está seguro da intolerância e da violência, então sim, é preciso que essas personagens apareçam e sejam notadas nas obras culturais de massa. É preciso porque essas representações, por sua abrangência, informam o mundo sobre esse segmento – sobre como vivem, como amam, porque riem e choram.

Filmes, de maneira geral, tentam representar um aspecto da vida e são uma excelente janela pela qual adentrar universos. É a razão pela qual nos dispomos a vê-los. Por conta disso, a série de três artigos que começa hoje e segue nas próximas duas segundas-feiras remonta um histórico da representação de gays no cinema, separados por localidade, com o cinema americano vindo nesta primeira parte. Mais necessária do que nunca, eles são uma maneira de nos fazer enxergar a multiplicidade do ser humano.

“Sangue Vermelho”: o primeiro bar gay do cinema

Nos primórdios

Pouca gente sabe, mas uma das primeiras imagens gravadas em celuloide é a de dois homens dançando ao som de um violino. Feita em 1895, para demonstrar o poderio do cinetoscópio (aparelho americano de exibição de filmes rival do cinematógrafo, dos irmãos Lumiére), a gravação é apontada como a primeira aparição de personagens homossexuais no cinema.

A popularização dos gays no início de Hollywood acabou se dando largamente através do estereótipo do “maricas” – em essência, o homossexual bem afeminado, caricato e aparentemente assexuado. A problematização aqui não é sua fuga aos padrões de masculinidade (as discussões de gênero já avançaram muito, gente), mas sim o fato dessas personagens nunca serem desenvolvidas, servindo apenas a um propósito: fazer rir.

Eles apareciam em produções como “Melodia da Broadway” (1929), “Myrt e Marge” (1933) e em “Sangue Vermelho” (1932), que, mais notoriamente, mostra uma cena com dois homens vestidos de camareiras entretendo um bar inteiro em um número musical.

“Festim Diabólico”: quando um dos protagonistas é flagrado durante um claro olhar de “Eu vou te matar se você não parar de olhar para esse boy”

A mordaça do Código Hays

Em 1930, o Código Hays entra em vigor nos EUA, brecando menções a diversos temas em filmes, incluindo a homossexualidade, em defesa da moral e dos bons costumes (qualquer semelhança com o estado atual das coisas é mera coincidência). No entanto, isso acaba deixando os profissionais da área peritos em inserir personagens homossexuais nas obras cinematográficas de maneira sutil e subentendida.

Um dos casos mais notáveis é o de “Festim Diabólico” (1948), um famoso suspense de Alfred Hitchcock, que adapta o caso real de um casal homossexual que idealiza um assassinato – tudo comunicado através de linguagem corporal e dicas nos diálogos. Outros filmes famosos da época, “Juventude Transviada” (1955) e “Ben-Hur” (1959), também podem ser lidos como grandes alegorias de amores homossexuais não correspondidos. No caso de “Ben-Hur”, inclusive, o escritor Gore Vidal, que trabalhou no roteiro do filme, admitiu posteriormente que esse subtexto foi proposital.

Uma menção válida no cinema independente é o cineasta experimental Kenneth Anger, que, longe das amarras dos estúdios, se tornou um dos primeiros cineastas dos EUA a mostrar francamente a homossexualidade em filmes como “Fireworks” (1947), que lida com o despertar sexual de um garoto de uma maneira onírica.

“Crime Sem Perdão”: “Isso é um pacote de chicletes ou você realmente está feliz em me ver?”

O risível vira temível

O sucesso de filmes como “Confidências à Meia-Noite” (1959) e “Quanto Mais Quente, Melhor” (1959), que repaginaram certos aspectos do “maricas” dos anos 20 e 30, e a crescente concorrência de filmes estrangeiros que não tinham restrições de produção como as americanas, acabaram levando ao fim do Código Hays.

O fim do código permitiu com que mais gays aparecessem em filmes, porém suas representações vinham carregadas de preconceito e sempre eram ligadas a comportamentos marginais ou vilanescos, bem como a distúrbios mentais.

Filmes como “De Repente, no Último Verão” (1959), “Na Solidão do Desejo” (1968) e “Crime Sem Perdão” (1968) pintam os gays como figuras perturbadas e o desejo homossexual como algo deprimente e digno de pena. Esse último, inclusive, tem uma das visões mais “bad vibes” do mundo dos clubes gays.

“Pink Flamingos”: o empoderamento do “camp” e das “drag queens”

Stonewall! (o de verdade, não aquele filme horrível do ano passado)

Os levantes de Stonewall, em Nova York, que marcaram o início do movimento gay nos EUA, deram um toque nos estúdios de que os homossexuais eram gente como a gente e mereciam retratos melhores na telona.

Nesse sentido, “Os Rapazes da Banda” (1970), um filme totalmente protagonizado por homossexuais que não são nem vilões nem vítimas, tampouco morrem no final (este último fato, inclusive, mencionado por um deles no roteiro), é lançado. O grande musical “Cabaret” (1972) e o independente “Pink Flamingos” (1972), ambos muito representativos, ainda que cada um à sua maneira, do “camp” setentista, também datam dessa época.

Por sua vez, em “Parceiros da Noite” (1980), os gays são mostrados sob uma luz tão negativa que o longa gerou protestos do movimento LGBT e causou um dano considerável à carreira do diretor William Friedkin, que demorou cerca de 15 anos para começar a retomar o sucesso comercial.

“Garotos de Programa”: “Não é gay se não beijar na boca”

O New Queer Cinema

No fim dos anos 1980, o movimento “New Queer Cinema” começou a emergir no cinema independente, buscando representações mais ousadas do estilo de vida dos homossexuais e apresentando cineastas que dedicavam sua filmografia inteira à temática.

Personagens que se afirmavam de maneira desafiadora perante a sociedade e abraçavam suas falhas, representações de minorias dentro da comunidade LGBT, e drásticas releituras do passado eram algumas das características que uniram as obras ligadas a essa corrente cinematográfica.

Nela, filmes como “The Living End” (1992) e “Garotos de Programa” (1993) anunciaram vozes mais conectadas ao cinema alternativo e quebrando paradigmas, colocando personagens homossexuais em todos os seus filmes, de maneiras muito diversificadas.

“O Segredo de Brokeback Mountain”: não ganhou Oscar de Melhor Filme, mas ganhou os corações do público

Gays oscarizados

Na mesma época, o cinema “mainstream” também viu protagonistas gays brilharem em histórias como “Parting Glances – Olhares de Despedida” (1986), “Meu Querido Companheiro” (1989) e “Filadélfia” (1993). Neste último, um dos astros mais populares dos EUA, Tom Hanks, ganhou o Oscar de Melhor Ator interpretando um homossexual, o que foi um marco. Os três filmes tratam do impacto que a epidemia da AIDS gerou na vida dos gays, abordando o assunto com delicadeza e, mais importantemente, não demonizando as vítimas.

Esse perfil só cresceu no século XXI, com filmes como “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), “Capote” (2005) e “Milk – A Voz da Igualdade” (2008), reforçando novas representações de homossexuais no cinema e obtendo sucesso de público e crítica. Todos esses entregaram personagens gays tridimensionais, chegaram à corrida do Oscar e saíram com prêmios.

No entanto, nem tudo são flores, já que ainda se nota uma preponderância de histórias em que esses personagens vivenciam tragédias e acabam mortos. Dos filmes feitos após 1990 citados aqui, apenas “Capote” não apresenta protagonistas homossexuais que morrem.

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