Você costuma sonhar com filmes? Para quem mora em Los Angeles, a capital do cinema, isso deve ser até comum. Imagine, por um momento, algum morador da cidade encostando a cabeça no travesseiro – uma das primeiras imagens que aparecem em Cidade dos Sonhos de David Lynch. Essa pessoa pode muito bem sonhar com algum filme antigo visto na TV, algo do tipo noir, com um mistério sobre perda de identidade. Esse filme misterioso que se passa na mente pode ser estrelado por duas lindas mulheres, uma loira e uma morena. Pode haver detetives nesse filme. Pode haver mafiosos. E podem até surgir, aqui e ali, alguns momentos de humor e terror. Cidade dos Sonhos é um filme sobre alguém sonhando com o cinema.

O título do filme aparece numa placa de trânsito, como no clássico Crepúsculo dos Deuses (1950). Quando ele começa, vemos uma mulher sobrevivendo a um acidente de carro na assustadora estrada de Mulholland Drive, à noite. Ela sai do carro destruído, perambula um pouco pelas ruas e se esconde numa casa. Quem é ela? Não sabemos. Nem ela sabe, pois perdeu a memória. Ela é a morena, interpretada por Laura Elena Harring.

Na manhã seguinte, Betty (Naomi Watts) chega a Los Angeles, com sonhos de se tornar uma estrela de cinema. Ela é a loira, e vai se hospedar na casa da sua tia, justamente o lugar onde a morena está escondida. Betty é simpática e todo mundo gosta dela. Quando as duas se encontram de surpresa, a morena observa na parede um pôster de Gilda (1946), clássico com Rita Hayworth, e diz a Betty que seu nome é Rita. As duas se tornam amigas. Na bolsa de Rita, elas descobrem um monte de dinheiro e uma pequena chave, de cor azul. Elas começam a investigar o que aconteceu no acidente, descobrem uma coisa bem assustadora, e se apaixonam uma pela outra. No meio tempo, Betty também se mostra uma ótima atriz.

Esse é o filme que o sonho conta, mas como em todo sonho, há divagações e elementos que parecem não se encaixar. Como a história do diretor de cinema Adam Kesher (Justin Theroux). Ele começa a experimentar uma onda de azar e passa a ser pressionado por mafiosos a escalar uma determinada jovem como protagonista do seu novo trabalho. Há também a história de um assassino de aluguel (Mark Pellegrino) que, numa cena bem humorada, mata um sujeito e, por acaso, se vê forçado a matar mais uma pessoa, e depois mais outra, para não deixar testemunhas do seu primeiro crime.

E há também uma pequena cena, quase um curta dentro do filme, entre um homem (Patrick Fischler) e seu psiquiatra (Michael Cooke) na lanchonete Winkie’s. O homem conta ao psiquiatra sobre um sonho que teve naquele lugar, e sobre alguma coisa muito assustadora nos fundos da lanchonete. Para enfrentar o medo, ambos vão dar uma olhada lá nos fundos… E o resultado é uma das cenas mais assustadoras do cinema recente.

Quem são essas pessoas? Vale notar que quase todas elas se comportam como arquétipos, como personagens rasos de filmes idem. A história do gênio do cinema enfrentando forças externas que atrapalham seu filme é um clichê. Mafiosos são um clichê. Mulheres com amnésia são um clichê. Ainda aparecem na história estereótipos típicos do cinema, como o Cowboy e a “Bruxa”. Mistérios no estilo noir também já foram vistos e revistos no cinema inúmeras vezes ao longo das décadas. Até o ator que contracena com Betty no seu teste lembra bastante o velho astro Burt Lancaster.

A questão da identidade é o maior interesse do diretor David Lynch no filme, e para ele as respostas, se existem, são fluidas como as fronteiras entre sonho e realidade no seu longa. E que melhor meio artístico para mostrar essa fluidez do que o cinema? Tudo no cinema apenas dá a impressão de ser verdade. No cinema, alguém pode atravessar uma porta num locação real, e na tomada seguinte chegar dentro de um estúdio, construído em outro lugar. Nos filmes, pessoas fingem ser quem não são. Fingem se apaixonar. Fingem que são capazes de feitos impossíveis. Não à toa Betty, ao começar a investigação com Rita, se mostra empolgada com essa possibilidade, ao afirmar à amiga que “a gente pode fingir que somos outras pessoas”. E todas sonham com o estrelato, e muitas estão dispostas a tudo para alcançá-lo.

David Lynch estabelece a atmosfera de irrealidade desde o início, graças a ferramentas como imagens desfocadas e distorcidas, o uso do som – os gritos distorcidos na cena do acidente, um zumbido nervoso que acompanha muitas cenas – ou as atuações malucas, como a do casal de velhinhos. Em Cidade dos Sonhos, velhos e mendigos são as figuras mais assustadoras do mundo. Além deles, o líder dos mafiosos é interpretado por Michael Anderson, o anãozinho de Twin Peaks, a revolucionária série de TV criada por Lynch, mas aqui ele é filmado por um ângulo que o faz parecer enorme.

Aliás, diz-se que a ideia de Cidade dos Sonhos surgiu a Lynch quando filmava Twin Peaks no começo dos anos 1990. Ele queria propor à rede ABC uma série derivada estrelada pela jovem Audrey Horne, personagem de Twin Peaks, vivendo aventuras em Los Angeles enquanto tentava virar atriz de cinema. A ideia não se tornou realidade, mas ficou na cabeça de Lynch até 1999, quando ele rodou Cidade dos Sonhos como um piloto de um possível seriado, novamente para a ABC. O piloto era estrelado por Naomi Watts e Laura Elena Harring, mas a rede o recusou. Com o auxilio do Studio Canal francês, Lynch reimaginou tudo como um filme, refilmou cenas, adicionou outras, e o resultado é o longa que conhecemos.

Nesse meio tempo, a jovem Jennifer Syme faleceu. Cidade dos Sonhos é dedicado a ela nos créditos finais, e talvez ela tenha fornecido um pouco de inspiração para a história. Syme foi assistente de David Lynch e chegou até a aparecer num dos seus filmes anteriores, num pequeno papel em Estrada Perdida (1997). Foi namorada do ator Keanu Reeves, perdeu o filho que teria com ele e algum tempo depois morreu tragicamente num acidente de carro. Foi a típica história de esperança em Hollywood transformada em algo triste e sombrio.

É o que ocorre no filme na sua última meia hora, quando os atores começam a interpretar outros personagens. De repente, a “Rita”, fragilizada e desprotegida, se torna uma estrela de cinema desejada e de personalidade forte. Betty é uma mera extra de filmagem e aspirante a atriz. O nome dela agora é Diane. As duas têm um caso que acaba de forma ruim. Os problemas de Kesher desaparecem. Os personagens esquemáticos continuam aparecendo aqui e ali, mas agora há uma sensação um pouco maior de realidade. A fotografia do filme fica mais dura, enquanto na primeira parte era mais glamourosa, com filtros e cores fortes.

Obviamente, a competência das duas estrelas principais ajuda e muito a vender a transformação. Harring, adequadamente inexpressiva pela maior parte do filme, se transforma numa mulher confiante nesta última meia hora. E Naomi Watts, revelada pelo seu trabalho aqui, impressiona por viver Betty/Diane com entrega e intensidade. Betty é versão idealizada, e ela se vê como uma estrela – não à toa, na cena do seu teste, ela usa um terno cinzento que a deixa parecida com uma loira de Hitchcock. Já Diane parece ser a pessoa real: carente, deprimida e ansiosa por uma vida ao mesmo tempo próxima e muito distante do seu alcance.

Antes dessa mudança, porém, há o momento de transição no filme, quando Rita e Betty vão visitar o Clube Silêncio. “No hay banda”, diz o mestre de cerimônia do clube, mas ainda assim se ouve música – novamente surge o tema da irrealidade do cinema. Aqui, Lynch revisita algumas das suas marcas registradas, como as cortinas vermelhas, um personagem que lembra o diabo e uma musica de Roy Orbison cantada de forma triste. Ao ouvirem a canção as duas mulheres choram, e algo que vinha sendo insinuado desde o começo acontece: o sonho bonito vira pesadelo.

Elas descobrem para quê serve a chave e o filme mergulha num portal. Do outro lado, vemos a atormentada Diane em meio àquela realidade completamente oposta à que vínhamos observando. É possível entender o filme – e está tudo lá, nas imagens e nas sensações provocadas por elas – como o conto de duas mulheres apaixonadas uma pela outra. Quando uma delas deixou a outra para tornar-se estrela, a abandonada contratou alguém para matar seu grande amor. E depois, ela não resistiu à culpa pelo seu ato e tirou a própria vida.

Antes disso, porém, ela deitou-se para dormir e sonhou que, por um momento, ela era a pessoa que sempre quis ser, tinha beleza e talento e também o amor da sua vida. Foi um sonho bonito, e apenas os filmes conseguem emular essa beleza. Porém, dentro de cada sonho existe a possibilidade de um pesadelo. Junto com a luz sempre há a escuridão, e lembranças do que ela fez começaram a se infiltrar no seu sonho bom. E há poucos cineastas capazes de compreender essas distinções (ou falta delas), entre sonho e pesadelo, entre cinema e ilusão, como David Lynch.